Ana Luísa: quão curto este pavio

A Ana Luísa Amaral era uma dessas pessoas que me sustentavam. Com ela era-me mais fácil acreditar em pessoas, na beleza e na fealdade do mundo.

Aqui no meio de nós, ainda há umas poucas horas, estava a Ana Luísa Amaral, tão jovem como sempre jovem foi. Assusta alguém, que nada tem que ver com ódios do quotidiano, ter saído de cena. A Ana era uma dessas pessoas que me sustentavam. Com ela era-me mais fácil acreditar em pessoas, na beleza e na fealdade do mundo. Acreditar, sem interferir necessariamente nas vidas dos outros.

Da Ana invejei a honestidade intelectual, mas, muito mais, a compulsão persistente para a vida dentro da poesia. Não que largasse o mundo (é Mundo um seu título de 2021, da Assírio & Alvim) e se desapegasse, como Ramos Rosa. Ana sempre esteve no mundo, isto é, com as pessoas, connosco, com a Maria Irene Ramalho e a Isabel Caldeira e tanta gente que valeria a pena mencionar. Mas esteve tão determinada em viver uma vida poética que pareceu abandonar o sentido de ser somente indivíduo. Não lhe descobri ponta de vaidade ou egocentrismo – isso esbarrava (havia quem não percebesse) com a inseparabilidade da poesia e da vida, e esse extraordinário divertissement, pathos e fruição a que se entregou.

Ontem fiquei lixado. Raramente a natureza esbanja alguma coisa. Desta vez, sim. O arquitecto (ou lá quem quer que seja, ananke ou isso) previu tudo – que iríamos ficar a lamber feridas como cães, e o pão fresco nos saberia a papéis. Vem no guião que é assim e nada há a fazer. E agora?

Penso no Luís Caetano. Penso no Som que os Versos Fazem ao Abrir e nas múltiplas quartas-feiras, à tarde, aturdido pela escola e salvo logo depois, dentro do carro, pela Ana e pelo Luís, numa outra dimensão. Penso em como ambos pousaram nas folhas dos versos de Ingibjörg Haraldsdóttir, que traduzi, e como desejaram que fossem editados. Penso em como a Ana nunca se furtou a responder às perguntas que lhe fiz sobre a inclusão de poemas seus em testes preparados para alunos. Penso em como ela tinha ainda tempo para aturar patetas como eu, sempre honestamente empenhada em nos fazer sentir bem. Penso em como a Ana Luísa me explicou que o poema Criação Sonhada terá sido motivado pelo conto As ruínas circulares de Borges. Penso em tudo o que perdi, ao perder esta mulher. Penso nas mulheres e na sua antiquíssima luta.

Penso ainda em como ela rechaçou a ideia de um dia poder ser nomeada para o círculo dos Nobel e como me explicou, elegantemente, não estar interessada na disputa de prémios – foi num encontro (Encontro de Leituras) via zoom, promovido pelo PÚBLICO, pouco antes desta tacanha guerra. Penso em tudo isso, e em como era uma fumadora inveterada, percorrendo, a cigarros, cada página da vida: “Que eu morro de vos ter, mas não de não ter-vos/ morro também em mil saudades e nervos”.

Orwell disse que “todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos”. Ana Luísa Amaral é prova de que não se pode pulverizar a vida de frases arrogantes. Graças à forma como se entregou a Emily Dickinson e a Louise Glück desejámos existir noutras vidas e noutras línguas. A Ana, não é preciso dizer mais, deu-nos a escada. Tornou-se então fácil subir pelos “nossos” próprios meios. Devemos-lhe sei lá quanto. Devemos-lhe o curto amor em que nos amou. A veemência épica, lírica e ética têm qualquer coisa de hiperbólico e insistente, até espectacular e espalhafatoso. Ela não: “Quão curto, meu amor, parece este pavio/ que, embora arda de ti, tão longe está do mundo”.

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