Três taças de trigo para três tristes tigres

Na minha imaginação, o momento de redefinição transforma o ser que o vive num foco de luz tão forte e vibrante que o faz levantar os pés do chão e levitar.

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Dos 13 alunos, 12 procuram reinventar-se de alguma forma DR

Cada pessoa é um mundo, várias vidas, muitos livros, uma biblioteca, é abismo, inteligência, dor, dúvida e alegria. Treze desconhecidos, orientados por um décimo quarto (o professor), reúnem-se numa sala de aula à procura de conhecimento, aperfeiçoamento, especialização ou reinvenção. Conversam, convivem, aprendem e ensinam. Sou um deles. Primeira parte.

Voltei à escola em busca de conhecimento e aperfeiçoamento na área do desenvolvimento pessoal, onde exerço atividade há já meia dúzia de anos e que me tem obrigado a constantes reinvenções.

“Reinventar”, que palavra bonita. Segundo o dicionário, significa “1. Tornar a inventar, 2. Mudar a maneira como algo ou alguém funciona ou se comporta”. É sobre o ponto 2 que tenho baseado o meu estudo e atividade na área do desenvolvimento humano.

A reinvenção pode constituir uma transformação na experiência de vida de uma pessoa e fascina-me pensar no instante em que alguém, avaliando a sua situação em dado momento, e por sentir-se descontente com a mesma — ou por uma outra qualquer motivação: estagnação, cansaço, bloqueio, obstáculo, criatividade ou busca de propósito — escolhe redefinir-se e mudar o rumo da sua história.

Na minha imaginação, esse momento de redefinição transforma o ser que o vive (um momento sempre individual, creio; somos sempre seres sozinhos, mesmo se por vezes acompanhados de outros) num foco de luz tão forte e vibrante que o faz levantar os pés do chão e levitar. Essa luz é a razão maior do meu fascínio pela reinvenção humana.

Dos 13 alunos, 12 procuram reinventar-se de alguma forma. A exceção é Rute (nome fictício, como todos os que aqui menciono), como nos explicou quando se apresentou à turma. Na primeira aula, foi-nos pedido que preparássemos uma formação para lecionar aos colegas. Na aula seguinte, quando o professor pediu um voluntário para iniciar a sessão, Rute, farmacêutica em atividade, saltou da cadeira para nos elucidar como se processa a comunicação dos resultados dos testes rápidos de antigénio (TRAg) à covid-19 ao Sistema Nacional de Saúde. Rute procurou na audiência alguém que nunca tivesse efetuado um teste.

Aproveitei o silêncio momentâneo para divagar numa pergunta: “Quem é que imaginaria que enfiar cotonetes no nariz se tornaria algo tão comum?” Assim que Rute terminou, rumei ao palanque, onde falei aos meus colegas sobre reinvenção (reinventando-me pouco, portanto…) e partilhei alguns conceitos como esperança, progresso, pensamento, ruminação e descoberta. E fico-me por aqui. O texto é sobre os meus colegas e sobre o que aprendi e recordei, não sobre o que partilhei.

Seguiu-se Marta, com quem recordei que a Ludoterapia — a palavra tem origem na palavra latina ludos, que significa “jogo” —, é uma terapia que funciona através de brincadeiras, que permite às crianças aprenderem e expressarem mais facilmente os seus conflitos, dificuldades e sentimentos, o que as ajuda na sua integração e adaptação social.

Durante a exposição de Marta, apercebi-me, por exemplo, que não devo dizer à Estrelinha (a minha filha de 2 anos) algo como “bebe o leite que eu deixo-te ver os desenhos animados”. Trata-se de manipulação. É verdade que não o fiz muitas vezes. E juro que nunca com a consciência de que estava a manipulá-la, mas a impaciência de um pai que quer convencer a filha a beber o leite, leva a que por vezes coloque na mesa todos os trunfos. Pais que me leem: já todos o fizemos, certo?

Na exposição seguinte, e até pareceu que o timing foi combinado só para vincar bem em mim a culpa por ter manipulado a Estrelinha (confesso tê-lo-ei feito também uma vez ou outra com o João, o meu filho mais velho), Paula relacionou os direitos humanos com as canções de Zeca Afonso, alguém que nunca se deixou manipular.

A apresentação consistiu numa viagem musical pelos temas do cantor de intervenção, começando pela lendária “Grândola Vila Morena”, que acompanhei deliciado com um sussurrado trautear e um bater do pé a compasso. Seguiu-se “A formiga no carreiro” (direito à diferença, à associação e à não associação), “Teresa Torga” (“Mulher na democracia | Não é biombo de sala”, diz a letra, e por aqui se entende o significado da canção), “O menino do Bairro Negro” (inspirado na pobreza de alguns bairros do Porto e na exploração de crianças nesses locais), “Os índios da meia praia” (a canção fala dos pescadores que, no início da década de 1970, assentaram arraiais na Meia Praia, vivendo em abrigos de madeira e junco e que por isso ganharam a alcunha de “índios”) e ainda o “Canto Moço”, belíssimo canto de esperança que devia soar em todas as ruas do nosso país pelo menos uma vez por dia. “Todas as pessoas são folhas em branco e ninguém consegue voltar a ser o que era após interação com outro. Daí a importância de prestar muita atenção à interação com o outro”, assim concluiu Paula a sua formação.

Retive a ideia, que aprecio: ser honesto e não usar máscaras. Boa deixa (“deixa”, repare bem na ligação deste termo com o tema da formação seguinte; depois venham falar-me em coincidências) para a aula intitulada “Do texto ao espetáculo — a encenação de um espetáculo a partir de um texto num grupo de teatro”, lecionada por Romeu (escolhi um nome bastante teatral, eu sei).

Um dos momentos altos do dia foi o exercício vocal que colocou 13 almas a gritar a plenos pulmões a frase “para o outro lado!”. Este exercício permitiu-me recordar quão libertador é gritar em público. Tenho de ir mais vezes à bola. Logo a seguir, talvez pelo empenho colocado no grito, fui nomeado para o papel de motard. Aceitei, claro. Não sei andar de mota, mas no teatro podemos ser qualquer coisa. Fiquei, todavia, com a pulga atrás da orelha. Talvez este seja o empurrão que precisava para me reinventar e aventurar-me no mundo das duas rodas motorizadas.

O meu desenvolvimento na arte da representação continuou com a prática orientada de “trava-línguas” — Infopédia: “popular exercício, passatempo ou jogo de pronunciação que consiste em dizer, depressa e corretamente, uma sequência de palavras que, por serem formadas pelos mesmos sons, mas em ordem diferente, se tornam difíceis de articular de forma clara.”

Todos ensaiámos o bem conhecido “Três taças de trigo para três tristes tigres”. Vá, tente também, por favor, eu espero. Enganou-se? Experimente criar uma imagem visual para cada palavra e volte a tentar. De nada. Deixo-lhe outra sugestão de trava-línguas para ensaiar que encontrei após uma curta pesquisa: “Sabendo o que sei e sabendo o que sabes e o que não sabes e o que não sabemos, ambos saberemos se somos sábios, sabidos ou simplesmente saberemos se somos sabedores.”

Saber, sabedoria. Palavras lindas. É vasto o repertório de frases e aforismos sobre sabedoria. Partilho algumas: “Quando não há necessidade, o sábio cala, o néscio fala”, “Não há louco sem acerto, nem sábio sem loucura”, “Ninguém é tão inteligente que não tenha a aprender ou tão burro que não tenha a ensinar”, “A sabedoria é um mar sem fundo, não há sonda que lhe meça a altura”.

— Vamos fazer um intervalo de 15 minutos e depois continuamos com as oito apresentações que ainda faltam — comunica o professor.

— Até já.

(continua)


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990.

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