Uma vila alentejana foi “descoberta” por um alemão e o resultado é um festival de música

Doze anos após a primeira visita do violinista e maestro Christoph Poppen a Marvão, a 8.ª edição do Festival Internacional de Música de Marvão que ali fundou foi a maior de sempre. “O meu sonho é que Marvão venha a ter uma boa sala de concertos”, confessa o director artístico.

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Segundo números fornecidos pela organização, 15 mil pessoas assistiram à 8.ªa ediçã do Festival Internacional de Música de Marvão cortesia fimm
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Ao longo de dez dias, os concertos espalham-se poor vários locais do concelho cortesia fimm
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Excepcionalmente, a 8.ª edição do festival centrou-se na música de câmara de Brahms cortesia fimm

Em 2010, num passeio de bicicleta (que era para ter acontecido em Itália), o maestro e violinista alemão Christoph Poppen (Münster, 1956) descobriu o silêncio de Marvão e as paisagens serenas a perder de vista. No dia seguinte, ainda sem pensar em música, deparou-se com a casa que um ano depois viria a ser sua – ficou fascinado com a perfeição estética da vila e da natureza em redor, assim como pela qualidade do silêncio a que um músico é tão sensível. Foi precisamente nesse silêncio que, no jardim da sua nova casa marvanense, Mozart lhe veio à ideia, “como uma inspiração” cuja memória ainda hoje o comove.

Apercebendo-se de que a única coisa que faltava em Marvão era música, a ideia seguiu o seu curso natural: uma primeira conversa com o dono do bar, a quem perguntou se conseguia imaginar um fim-de-semana de música no castelo, com alguns músicos amigos; a visita de Franz Xaver Ohnesorg, uma figura inspiradora e que, entre muitos outros cargos, foi director da Filarmónica de Berlim e fundador da Trienal de Música de Colónia, para discutir a exequibilidade da ideia; o desafio lançado a alguns dos muitos amigos músicos de elevado nível artístico que Poppen e a sua mulher, a soprano Juliane Banse, têm e que vieram a título gracioso para a primeira edição do Festival Internacional de Música de Marvão (FIMM), que viria a acontecer em 2014. Enquanto maestro, sentia que um fim-de-semana musical sem uma orquestra não estaria completo e, com um livro de fotografias sobre Marvão que levou a Lisboa como elemento persuasor conseguiu que a Orquestra Gulbenkian fosse à vila-fortaleza.

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O maestro Christoph Poppen cortesia FIMM

O sucesso foi tal que, após a primeira edição, a autarquia perguntou se, em vez de um, o festival não poderia passar a ter dois fins-de-semana. Como não se podia manter os convidados internacionais uma semana à espera, inactivos, juntaram-se pequenos concertos pelo meio. E à segunda edição o FIMM passou de um fim-de-semana para 10 dias.

Actualmente, o cartaz já não é preenchido apenas pelos amigos da família Poppen, mas as estrelas internacionais que vêm a Marvão fazem-no por valores muito abaixo dos seus honorários habituais, pelo que se estabelece, pelo menos, uma ligação de amizade profissional.

“Desde o primeiro momento, o objectivo foi atingir o mais elevado nível possível, porque Marvão é um lugar perfeito e eu não queria trazer aqui senão o melhor do melhor. Como eu e a minha mulher trabalhamos em diferentes países, conhecemos óptimos artistas a quem falamos sobre Marvão e que logo se manifestam interessados em vir cá. Por outro lado, entendo que é nossa missão promover a nova geração de músicos portugueses, na qual se encontram tantos artistas extraordinários, como pudemos ouvir, na Ammaia, com a Orquestra XXI, que é, para mim, o símbolo do futuro musical de Portugal. O nível é elevadíssimo e os músicos vêm de todo o lado, mas são todos portugueses.”

2023, ano vocal

As ruínas da cidade romana de Ammaia ou as reverberantes igrejas de Santa Maria da Devesa (Castelo de Vide) ou de Nossa Senhora da Estrela (Marvão) não são as mais adequadas à interpretação e à fruição musical, mas a música acontece e os muitos ouvintes não parecem particularmente incomodados. “Muitas decisões são tomadas por razões práticas. Teoricamente, qualquer pessoa julgará impossível fazer aqui um festival de música, porque não há nenhum auditório, mas o facto de mil pessoas se sentarem ao ar livre a ouvir o Concerto para orquestra de Bartók (que não é entretenimento) já é qualquer coisa de extraordinário. De alguma maneira, a transmissão de energia funciona. No final, a maioria das pessoas está satisfeita”. Este ano, segundo números da organização, foram 15 mil a assistir aos concertos.

Excepcionalmente, a 8.ª edição do festival centrou-se na música de câmara de Brahms, apresentada por ordem cronológica. É um projecto de luxo que só se consegue realizar com muito dinheiro... ou com amizade. “E estou muito orgulhoso por termos conseguido seguir escrupulosamente o número de opus, o que obrigou a uma complicada coordenação de datas com os artistas.”

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Para a primeira edição, em 2014, Poppen e a sua mulher, a soprano Juliane Banse, convidaram a título gracioso músicos de carisma internacional a estarem em Marvão cortesia fimm

Não estão previstas mais integrais nem se adianta muito sobre o futuro, mas haverá destaques. “Ainda não consegui decidir se dedicamos 2023 a Mendelssohn ou a Schubert, mas será um ano vocal, pois vamos trazer cantores extraordinários. Estamos num ponto em que o festival tem crescido muito e eu continuo a ambicionar ter um programa em que o público consiga estar presente em todos os concertos, se o desejar. Houve anos em que tivemos concertos a decorrer em simultâneo mas, além de confuso, esse modelo acaba por não ser suficientemente pessoal. Haverá sempre evolução, mas não tenciono que o festival cresça em tamanho. Talvez até reduza o número de actividades para ganhar em qualidade – não no que toca aos concertos, que já são de um nível extraordinário, mas no que respeita ao tempo, reduzindo o stress de toda a equipa de produção, que está constantemente a trabalhar. Perguntam-nos porque não crescemos mais para outras cidades, fazendo um Festival do Alentejo, mas eu creio que Marvão deve permanecer Marvão. Preferia concentrar-me em pedir ao presidente da Câmara que tirasse os carros da vila e, então, seria um verdadeiro paraíso. O meu sonho é que Marvão tenha uma boa sala de concertos”, o que permitirá não só atingir as desejáveis condições de escuta e de trabalho, mas também realizar concertos noutros momentos do ano.

No momento

Sobre o seu estranho dom de ubiquidade, Christoph Poppen confessa que este foi o festival mais intenso, sem momentos livres, durante o qual não conseguiu dormir mais de 5 horas por noite. Diz que é graças a um planeamento detalhado e antecipado que consegue estar presente em todos os 36 concertos, fazer ensaios daqueles em que participa como violinista ou como maestro, receber os convidados, almoçar com os patronos, despedir-se dos que já estão de saída… “Tento estar presente no momento.”

A equipa “multi-nacional” que organiza o FIMM move-se também pela amizade. “Trabalho com muitas organizações e, quando encontro alguém que se destaca, falo-lhe de Marvão. Admiro mesmo a intensidade do trabalho desta equipa. A sua dedicação não vem do dinheiro, mas sim da paixão.”

Ao nível do topo, há um único português, chegado por acaso para a terceira edição: o director executivo. Ao contrário de Poppen, Daniel Boto é menos visível e raramente ouve um concerto do início ao fim. Em permanente actividade, tenta garantir que tudo está no sítio certo à hora certa e faz com que os inevitáveis imprevistos não tenham expressão.

“Acredito que a música é muito mais do que entretenimento. Nem toda a gente entende quão importante é termos a arte nas nossas vidas. Com o mundo a ficar cada vez mais difícil, a humanidade tem que se focar nos valores intemporais, em algo a que a próxima geração possa agarrar-se”, diz Poppen. No FIMM, a transmissão de energia parece acontecer. “É uma experiência enriquecedora que vai muito além de um momento agradável, porque, no contexto de Marvão, parece mais fácil as pessoas abrirem-se e receberem tudo mais intensamente. Isso é perceptível junto de quem fica aqui mais do que um dia: abre-se muito mais à beleza. Eu acredito verdadeiramente no belo”, admite o maestro.

Após a gala de encerramento, que outro festival se atreveria a terminar com um jantar ao ar livre para dezenas de pessoas, com músicos, organização e amigos – arraial abrilhantado pela Tuna Sénior – e um discurso do director artístico agradecendo individualmente a cada um dos muitos colaboradores dos mais diversos departamentos? Ser um festival que dá tanta importância às pessoas como à excelência musical é um dos ingredientes que tornam o FIMM especial.

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