O descontentamento dos médicos

Se os salários amanhã forem aumentados para o dobro, dentro de um ano todos estarão igualmente insatisfeitos porque o problema não é — só — esse. O dia-a-dia tornou-se insuportável. Esse é o problema.

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Marcelo Leal/Unsplash

O descontentamento dos médicos do SNS (apenas do SNS?) tem sido tema corrente nas últimas semanas. Existe uma grande discrepância na agenda dos sindicatos (e da Ordem que tenta ser o terceiro sindicato) e na agenda de cada médico. Nunca, como nos últimos anos, tinha crescido tanto o número de médicos sindicalizados (uma classe algo aburguesada e pouco reivindicativa), especialmente entre os mais jovens profissionais. É este o sinal.

O sistema encontra-se altamente polarizado e a insatisfação actual é dos médicos, em grande parte, contra os médicos. Médicos em posições de liderança intermédia ou superior, maus gestores, péssimos gestores de pessoas, que se tornam verdadeiros tiranos do quotidiano. Médicos que se eternizam em cargos de poder (e não de liderança) em instituições anquilosadas pela falta de democratização e pela ausência de limitação legal em cargos de chefia.

Os que tratam como peças de uma máquina pessoas inteligentes e que muito tinham para contribuir para as instituições e doentes. Pessoas fora do tempo que ainda nada perceberam sobre o que os rodeia, que não têm uma pinga de pensamento estratégico, de capacidade de liderar pessoas e que a única preocupação é quem cumpre a urgência de amanhã. O sistema de saúde (e não só o SNS) vive em microgestão.

São esses os médicos que renegam direitos como o descanso, folgas ou as férias e assediam os grevistas. Os que se encontram em topo de carreira — inclusive remuneratória — e que, por vezes, optaram por uma vida exclusiva na medicina, de milhares de horas extra anuais ladeadas de remunerações — pelo menos em época — correspondentes.

São os que se recusam a compreender a mudança total de paradigma da prática médica: um enorme crescendo da exigência técnica e científica, da responsabilização legal, acompanhada pelo decréscimo brutal dos salários (e, consequentemente, poder de compra), a total ausência de progressão e, acima de tudo, com o facto de haver pessoas que possam ser excelentes médicos e não desejam ter uma vida afim à sua, “apenas” trabalhando de forma organizada, eficaz e eficiente ao longo de 40 horas semanais.

São os que não entendem como anormal que os seus colaboradores tenham uma carga horária não remunerada diária (fruto de desorganização, muito mais que da falta de recursos), achando que isso é o que deve acontecer e que interpretam como hediondo ter um horário de trabalho e reconhecer o horário extraordinário como tal: extraordinário. O descontentamento também é contra eles.

A organização, ou falta dela, poderia ter sido revista com a empresarialização dos hospitais que foi apenas aproveitada por gestores (e médicos gestores) para operações financeiras, substituição de postos de trabalho por prestadores externos e diminuição de direitos concretos dos trabalhadores. Gestão operacional, reorganização do trabalho ou pensamento sobre as funções dos profissionais manteve-se um autêntico deserto. É preciso mais dinheiro, mas é precisa muito mais organização.

Se os salários amanhã forem aumentados para o dobro, dentro de um ano todos estarão igualmente insatisfeitos porque o problema não é — só — esse. O dia-a-dia tornou-se insuportável. Esse é o problema.

Não, não estão todos no mesmo barco. E o descontentamento, pelo menos nas gerações mais jovens, também é contra os médicos, talvez, essencialmente, contra os médicos.

O texto que leste até ao anterior parágrafo foi escrito e publicado numa rede social a 10 de Maio de 2018 a propósito da greve dos médicos, tendo sofrido pequenas correcções para a sua republicação actual. Os problemas mantêm-se, tal como a ausência de soluções.

O desequilíbrio remuneratório, transversal à administração pública, entre os que entraram na profissão antes e após a primeira metade da década de 2000 é muito marcado. As expectativas dos mais jovens sobre o que é ser médico nos dias de hoje são diferentes: procuram uma carreira clínico-científica atractiva, com possibilidade de diferenciação e desenvolvimento, mantendo-a em equilíbrio com a vida pessoal.

A incapacidade para perceber estas alterações levará o sistema de saúde ao colapso.

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