Com o boom do teletrabalho, nómadas digitais procuram viajar de forma sustentável

Está a aumentar o número de pessoas que, não precisando de trabalhar no escritório, viajam pelo mundo levando o emprego às costas. O desafio está em fazê-lo de forma ecológica. Há trabalhadores digitais que tentam não saltar muito entre países, mas a dependência do tráfego aéreo preocupa ambientalistas. Comecemos este olhar por Portugal.

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O teletrabalho cresceu imenso com a pandemia Paulo Pimenta

Sentado na esplanada de um café no coração de Lisboa, numa manhã de Junho, o especialista em vendas Victor Soto estava ocupado a contactar diversos colegas europeus e das Américas. A pandemia deu ao britânico-peruano de 33 anos a possibilidade de se converter num chamado “nómada digital”. “Este estilo de vida dá-me muita liberdade”, diz, explicando que, para poder explorar a sua paixão por viajar, decidiu começar a colaborar apenas com empresas que lhe permitam trabalhar de forma totalmente remota.

Victor Soto é um de muitos trabalhadores que, por estes dias, estão a procurar viver uma vida menos frenética. Os nómadas digitais são, basicamente, trabalhadores remotos que viajam regularmente para diferentes locais. Estas pessoas ainda levam os seus empregos com elas para onde quer que vão, mas estão a optar por passar mais tempo em cada região que visitam. Alguns desejam desfrutar de uma experiência mais rica do ponto de vista cultural. Outros pretendem ser mais amigos do ambiente.

O teletrabalho cresceu imenso com a pandemia e o número de países que emitem vistos para nómadas digitais, permitindo-lhes que fiquem a trabalhar nesses mesmos países até dois anos, está a crescer (a lista inclui, por exemplo, Aruba, Barbados, Cabo Verde, Croácia, Estónia, Indonésia, Malta e Noruega).

O perfil típico de um nómada digital está a mudar. Antes da pandemia, o estereótipo era o de um freelancer de 20 anos a saltitar entre locais solarengos, ostentando pouco mais do que calções, chinelos e um computador portátil. Agora, está a crescer o número de trabalhadores digitais que começam a viajar com os seus parceiros e filhos depois dos 30 (ou até 40) anos. Muitas vezes, essas pessoas passam mais tempo num só lugar, procurando não apenas beneficiar de alugueres mais baratos, como também apreciar (e contribuir para) a cultura local.

Embora não haja muitos dados sobre a pegada carbónica dos nómadas digitais, estes estão, em todo o caso, a tentar voar menos, hospedar-se em sítios mais sustentáveis e investir em (ou contribuir para) diversos tipos de projectos “verdes”.

Mas os activistas do clima não estão convencidos, referindo que os nómadas digitais ainda dependem muito do tráfego aéreo, responsável por até 3% das emissões globais de gases com efeito de estufa (GEE).

“Acho que sentimos alguma culpa, porque o principal problema desse estilo de vida são as viagens de avião”, diz Emmanuel Guisset, ex-nómada digital que, agora, é responsável pela Outsite, uma rede global que dá a várias pessoas, incluindo nómadas digitais, a possibilidade de trabalhar em espaços de co-working (e viver em espaços de co-living).

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Não há muitos dados sobre a pegada carbónica dos nómadas digitais — e o facto de estes andarem muito de avião preocupa ambientalistas Mário Cruz/Lusa

Estadias mais longas para poluir menos

Os nómadas digitais são, na sua maioria, pessoas norte-americanas. Um estudo feito em 2021 pela plataforma americana de freelancers Upwork estimou que, até 2025, 36,2 milhões de cidadãos norte-americanos estarão a trabalhar remotamente. Se a previsão se materializar, estaremos perante um aumento de 87% face aos níveis pré-pandemia.

Alguns destinos turísticos têm acolhido os nómadas digitais entusiasticamente. O facto de haver cada vez mais viajantes interessados em passar temporadas mais longas na mesma região tem sido benéfico para esses mesmos destinos, que precisam de recuperar da pandemia.

Uma sondagem feita em Maio pelas empresas Fiverr e Lonely Planet mostrou que um terço dos nómadas digitais inquiridos muda de poiso uma vez por trimestre, enquanto 55% gosta de ficar a trabalhar num local e viajar para outra região apenas após três meses ou mais. No ano passado, a empresa Airbnb deu conta de um aumento de 90% (face a 2019) nas reservas de estadias longas (mais de 28 noites) em Portugal.

Mas os nómadas digitais admitem que ainda há muito tráfego aéreo envolvido.

Esquemas de compensação de carbono: sabemos se têm funcionado?

Denise Auclair, da Federação Europeia dos Transportes e do Ambiente (T&E), refere que a pandemia trouxe consigo “uma oportunidade de ouro” para reduzir o número de viagens de negócios presenciais, cujo impacto ecológico pode ser significativo. Mas a especialista não sabe se, nos seus relatórios anuais de emissões de GEE, as diferentes entidades empregadoras estão a considerar a pegada carbónica dos nómadas digitais que com elas colaboram.

Emmanuel Guisset diz que os nómadas digitais estão a procurar fazer uma compensação da sua pegada carbónica, financiando diversos projectos “verdes”. Mas isso meramente “dá às pessoas uma falsa sensação de que estão a voar de forma ecológica”, opinam ambientalistas como Dewi Zloch, da organização Greenpeace. Essa especialista em aviação faz referência a um trabalho de pesquisa que foi encomendado pela Comissão Europeia em 2017 — e que indicou que os esquemas de compensação de carbono não estão a contribuir para reduções reais e mensuráveis de emissões de GEE.

Seja como for, determinados espaços de co-working e co-living — que, nalguns casos, foram criados justamente a propósito do número crescente de nómadas digitais — têm tentado pôr em prática algumas ideias amigas do ambiente.

Em tempos, a Outsite plantou uma árvore por cada reserva feita em locais desde as montanhas dos Andes até à Indonésia. O espaço de co-living Traditional Dream Factory, que deverá ser inaugurado no Verão do próximo ano, no Alentejo, quererá levar a cabo algo mais ambicioso. Samuel Delesque, um dos responsáveis, fala sobre querer criar uma comunidade de nómadas digitais, engenheiros, artistas e também investidores em criptomoedas. O objectivo é que essa comunidade, de alguma forma, contribua para a regeneração do território.

Em terrenos afectados pela desertificação, Samuel Delesque e a sua equipa já começaram a cultivar culturas sequestradoras de nitrogénio. Eles também pretendem isolar os seus alojamentos e ainda criar piscinas e chuveiros naturais, de modo a economizar água e ser auto-suficientes.

Ele próprio um ex-nómada digital, Samuel Delesque planeia, no futuro, expandir-se para países como África do Sul e Estados Unidos. Para o empresário franco-dinamarquês, cuidar do planeta está no centro do seu projecto. “Se não conseguirmos alinhar os valores económicos com os ecológicos, estaremos mesmo condenados enquanto espécie”, comenta.

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