O Povo que vive, e vai continuar a viver, em condições indignas

Desde que o Orçamento Geral do Estado para 2022 foi aprovado, ficámos a saber que pelo menos 60.610 famílias a viver em situação indigna vão ficar para trás.

Face aos acontecimentos que estiveram no centro do debate político nas últimas semanas, com o colapso de várias estruturas integrantes do Serviço Nacional de Saúde, não podemos deixar de recordar que o argumento mais utilizado para justificar a falta de uma resposta pública às necessidades habitacionais dos portugueses, ao longo de décadas, tem sido a prioridade dada à construção de outros pilares do Estado Social, com destaque para a Saúde e a Educação.

Esta formulação foi pela primeira vez utilizada à data da apresentação do Plano Estratégico para a Habitação 2007-2013, em Setembro de 2007. Foi depois recuperada no Programa de Governo de 2020 (ver pág. 109). Mais recentemente, no Programa Nacional de Habitação, na exposição de motivos, afirma-se que “representa, antes de mais, um avanço importante na tarefa de construir os alicerces de uma política pública de habitação que seja estável, duradoura e capaz de subsistir às diferentes conjunturas, fechando o ciclo de progressivas conquistas sociais, iniciado em abril de 1974, nomeadamente nas áreas da saúde e da educação”. Não se trata, definitivamente, de uma formulação muito feliz, tendo presentes os problemas que afectam cada vez mais a Escola Pública e o Serviço Nacional de Saúde.

Voltando aos números da habitação, foram até agora identificadas 86.372 famílias a viver em condições de habitação indignas.

  1. 75.978 famílias que vivem em 172 municípios cujas Estratégias Locais de Habitação (ELH) foram validadas pelo IHRU;
  2. 8195 famílias que vivem em 29 municípios cujas ELH ainda não foram aprovadas pelo IHRU;
  3. 2199 famílias que vivem em 59 concelhos que ainda não dispõem de ELH. Estes concelhos integravam o conjunto dos 187 que sinalizaram 25.762 famílias a necessitarem de realojamento, nos termos do levantamento inicial divulgado pelo IHRU.

Ainda nos falta saber o que se passa em 109 municípios – que incluem os 59 referidos no ponto 3 –, nos quais residem 1.478.116 portugueses. Municípios que ainda não concluíram/aprovaram as respectivas ELH.

Desde que o Orçamento Geral do Estado para 2022 foi aprovado, ficámos a saber que pelo menos 60.610 famílias a viver em situação indigna, nos termos estabelecidos na Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) e na legislação a ela associada, vão ficar para trás. A situação de indignidade habitacional em que vivem encontra-se assegurada por muitos mais anos, fruto das decisões que o Governo decidiu tomar.

Decidiu é a palavra certa. O Governo não ignora a situação em que estas famílias vivem. Não ignora, tão pouco, que mais alguns milhares de famílias estão na mesma situação de habitação indigna. Conhecedor desta realidade o Governo optou por investir os recursos disponíveis noutras áreas. Por exemplo, o suplemento de mais de 1600 milhões de euros que nos chegaram via PRR não será sequer proporcionalmente redistribuído pela habitação. Essa verba, se aplicada na sua totalidade, permitiria assegurar habitação condigna a pelo menos mais 26 mil famílias, tendo em conta a necessária revisão em alta dos preços base utilizados pelo IHRU nas suas análises.

Ao mesmo tempo, o Governo ignora as possibilidades que a legislação existente lhe confere para socializar as mais-valias urbanísticas resultantes do processo de urbanização. Veja-se o regresso em força dos velhos projectos do Litoral Alentejano. Falidos com estrondo nas décadas de oitenta e noventa, contribuíram para obrigar os portugueses a resgatar, à custa do seu nível de vida e do seu futuro, o sistema financeiro que com eles se atolou na ganância e na insolvência. Voltam agora com novas roupagens e isentos, como sempre, do pagamento das mais-valias urbanísticas, mas arrastando pesados problemas para o território, que o Estado resolverá mais tarde, se conseguir. Veja-se os investimentos anunciados em infraestruturas públicas, e a enorme valorização dos terrenos situados nas áreas envolventes, de que o novo aeroporto se prepara para ser o mais recente exemplo. Valorização integralmente capturada pelo mercado.

Sem se enfrentar o problema do financiamento não haverá solução para o problema da habitação e, de uma forma perversa, a intervenção pública acabará por funcionar como geradora de maiores desigualdades no acesso à habitação.

A política nunca é uma fatalidade: é sempre uma escolha. Foi assim no tempo longo do passado quando sucessivos governos erraram atribuindo ao mercado a resolução do problema da habitação. Num país em que há uma ladainha permanente sobre a falta de consensos para “as grandes reformas”, este é um dos mais nefastos consensos que caracteriza a política portuguesa das últimas três décadas.

Os mercados, e os seus agentes, mostraram de forma exuberante como o conceito de eficiência associado à sua actuação pode ser entendido. Veja-se o facto de existirem mais de 700 mil fogos vagos, algumas dezenas de vezes mais do que os fogos públicos, indesculpavelmente, na mesma situação. Veja-se os direitos de construção que “classificam” vastas partes do território, cobertos por urbanizações zombies, já uma vez por nós resgatados, antes de serem integrados numa qualquer “Nata”. Esses solos, e os direitos de construção a eles associados, se utilizados pelo Estado após o resgate, permitiriam construir centenas de milhares de fogos a um preço bastante mais reduzido, sem necessidade de adquirir os terrenos, onde eles fazem mais falta e para as populações que deles mais necessitam.

Sabemos que há uma crise na habitação que se arrasta há décadas, com os preços de aquisição e de arrendamento de uma casa sem qualquer relação, hoje como nas últimas décadas, quer com os custos reais da construção, muito menos com o rendimento dos portugueses. No entanto, não podemos ignorar que a parte da população mais atacada por esta velha crise, sempre renovada, pertence ao grupo dos que não têm voz, aqueles cuja miséria está escondida nos arrabaldes pior equipados e menos acessíveis, nas barracas por detrás do mato, longe dos olhos das “classes solventes”, como agora se diz. Esses, os mais pobres entre os pobres, não vivem apenas nas Áreas Metropolitanas: estão espalhados por todo o país.

É por isso que no tempo breve do presente são urgentes as medidas que permitam concretizar os objectivos de solidariedade social e comprometer a sociedade com objectivos colectivos que visem o bem comum. Eram esses objectivos que faziam da NGPH uma política pública que se admitia ser capaz de concretizar uma mudança real na vida dos portugueses. Uma política capaz de promover o bem comum. Não tem sido assim.

A municipalização da política, com o Estado a demitir-se de recuperar a sua dimensão de Estado Produtor, veio lançar novos desafios e criar novas dificuldades. Se pensarmos nas fragilidades que caracterizam grande parte das estruturas municipais, e na ausência de vontade política do Governo para mudar esse estado de coisas, temos que concluir que não será este o nível adequado, com algumas excepções, muito determinada pela dimensão das autarquias, para gerir os processos que aí vêm. Faz falta uma estrutura regional que aproxime o IHRU das autarquias e que seja orientada numa lógica de missão.

Pensemos na resposta dada para elaborar as Estratégias Locais de Habitação. O recurso a ajustes directos foi a regra. Em muitos casos a interacção com as estruturas locais nem sequer existiu. Muitos executivos compraram um Produto, não foram capazes de iniciar um Processo. Outros, muitos, nada fizeram até agora, certamente não por falta de vontade, mas por manifesta falta de meios. Há ainda a magna questão dos beneficiários directos que, numa grande maioria de casos, não dispõem de recursos para realizar as candidaturas e muito menos para financiarem a parte de capitais próprios que lhes é exigida. Esses, na sua grande maioria, vão ficar para trás.

É difícil aceitar que a falta de vontade política possa fazer esmorecer o compromisso inicial e empurre para as calendas, para o tempo longo do futuro sem futuro, uma resposta cabal a todas as famílias em situação indigna.

Não se trata de resolver tudo da mesma vez. Trata-se de reagir à dimensão do problema, assegurando um compromisso razoável num período aceitável. Não há compromisso sério sem uma calendarização associada. Nos moldes actuais – assegurando uma capacidade de financiamento semelhante àquela que garantimos com o PRR –, nem em 2040 a situação de habitação indigna estará resolvida. Esse nível de financiamento, no entanto, está longe de estar assegurado, tão intensamente a ideologia “das contas certas” marca o nosso presente, sempre com o objectivo de condicionar o nosso futuro, confinando-nos à pobreza.

Ainda que nos momentos de celebração colectiva aqueles que elegemos para os mais altos cargos nos recordem que Portugal é o seu Povo, isso pouco ou nada adianta quando, no momento da tomada de decisão política, no momento das escolhas políticas, se opta, reiteradamente, por opções políticas que deixam centenas de milhares para trás, se opta por não tomar as medidas capazes de mudar a vida a essas pessoas, confinando-as a uma vida sem futuro. É por isso que continuamos pobres enquanto país e cada vez mais desiguais. Portugal é o seu Povo, mas não pode continuar a esquecer o Povo que vive, e vai continuar a viver, em condições indignas.

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