Ensino da História e formação para a cidadania: a favor ou contra, para quê e como?

Para quem proclama a importância de o ensino da História formar para uma cidadania democrática e promotora de desenvolvimento integrado/sustentável, é pouco compreensível não defender o aumento da presença da historiografia e dos docentes de História no nosso sistema de ensino não superior.

Considero que vivemos hoje, mesmo nos países desenvolvidos e de desenvolvimento intermédio, um período simultaneamente difícil e desafiante. Para além da guerra resultante da tentativa de invasão/anexação da Ucrânia pela Federação Russa, destaco a crise de democracias e do multilateralismo, o reforço de ditaduras/de populismos autoritários e do unilateralismo. Saliento a crise social e económica (resultante da hegemonia do monetarismo e da globalização neoliberal), a crise ambiental e de recursos naturais não renováveis. Consequência e, ao mesmo tempo, causa desta etapa particularmente disfuncional, a radicalização ideológico-cultural limita, penso, quer a capacidade de produzir e de divulgar conhecimento tão objectivante quanto possível, quer as possibilidades de diálogo e de consensualização de mínimos denominadores comuns.

Face a uma tal conjuntura acrescidamente ameaçadora e exigente, defendo que se justifica, mais ainda, debater e intervir, tanto no que concerne ao peso que a historiografia e os professores de História devem ter nos currículos do sistema de ensino não superior português, como em relação ao papel que o ensino da História deve desempenhar em termos de formação para uma cidadania democrática e promotora de desenvolvimento integrado/sustentável. Constato, no entanto, que a UNESCO e o Conselho da Europa, a União Europeia e o Estado Português, várias organizações da sociedade civil e do sistema de investigação/ensino superior não determinam, antes pelo contrário, a ampliação da presença da historiografia e dos docentes de História no nosso sistema de ensino não superior.

Verifico, também, com grande perplexidade, que aquelas entidades tendem a prescrever uma modalidade de correlacionamento entre ensino da História e formação para a cidadania que não posso deixar de avaliar como sendo contraditória com os seus próprios pressupostos e, ao mesmo tempo, irrealizável num regime democrático. Isto é, indicam que, através das actividades lectivas/extra-lectivas e da avaliação, o ensino da História deve treinar e incentivar os estudantes a adoptar a única mundividência — a informação e os critérios de valoração/interpretação, as concepções e as competências, a actuação — que seria supostamente compatível com a viabilização de sociedades democráticas e desenvolvidas (social e territorialmente integradas, sustentáveis).

Advogo que se trata de uma estratégia irrealizável em países com regimes democráticos ou demoliberais abertos porque nessas sociedades estão presentes várias concepções de democracia e de desenvolvimento; porque não é proibido pugnar pela implementação de outras soluções políticas e de outras modalidades de organização social global. Objectivo irrealizável, igualmente, porque, por um lado, uma das principais funções dos referidos sistemas de ensino não superior é a divulgação do conhecimento produzido pelas humanidades e pela ciência, pelas artes e pelas tecnologias de base científica; por outro lado, porque os professores são autónomos na estruturação do respectivo desempenho profissional.

Estaremos perante uma lógica contraditória com os seus próprios pressupostos, uma vez que a consolidação de democracias e o fomento de desenvolvimento integrado/sustentável dependem da capacidade de os sistemas de ensino não superior apoiarem a qualificação das vivências pessoais, profissionais e cívicas também a partir da recepção crítica de conhecimento tão objectivante quanto possível. Dependem, essencialmente, do reconhecimento generalizado da noção de que, nas sociedade humanas, uma grande parte das concepções existentes — dos valores e interesses, propostas e práticas — tem alguma legitimidade ética e política, devendo ser aceites, quer como actores negociais, quer como potenciais fontes de influência (gerando sincretismo ideológico e o estabelecimento mínimos denominadores comuns).

Para além do mais, desde as décadas de 1920 e 1930 mas, sobretudo, do pós-Segunda Guerra Mundial, com várias origens, o paradigma neo-moderno e a história nova têm viabilizado a elaboração e a divulgação de conhecimento historiográfico de cariz predominantemente interpretativo (reconstituição e análise, tão objectivante quanto possível, das problemáticas delimitadas). Nos países com regimes democráticos ou demoliberais abertos, a nova historiografia tem assumido flexibilidade e sincretismo teóricos; valorização paritária de inúmeras problemáticas; mobilização de documentação oral e material, escrita (manuscrita e impressa, narrativa e serial) e gráfica, audiovisual e digital; utilização de diversas metodologias, algumas das quais de natureza interdisciplinar. Considera, igualmente, os âmbitos local e regional, nacional e sub-continental, continental e global; as escalas individual e familiar, organizacional e institucional, grupal e colectiva.

Convergentemente, também devedora do paradigma neo-moderno, a didáctica da História historiográfica — forma de conceber aquela tecnologia de base científica alternativa à didáctica da História tradicional, à didáctica da História behaviorista, à didáctica da História construtivista ou Educação Histórica — propõe um ensino da História focado essencialmente, quer na divulgação de discursos historiográficos objectivantes, quer no apoio à aquisição de conhecimentos e de competências complexos pelos estudantes. Recorrer-se-ia, para o efeito, tanto à leccionação de conteúdos programáticos em sentido estrito (adoptando estratégias e recursos múltiplos), como ao abordar de problemáticas complementares, à concretização de debates cívicos correlacionados e à dinamização de clubes de actividade relevantes.

Diria, assim, que, para quem proclama a importância de o ensino da História formar para uma cidadania democrática e promotora de desenvolvimento integrado/sustentável, é pouco compreensível não defender o aumento da presença da historiografia e dos docentes de História no nosso sistema de ensino não superior. É, igualmente, contraproducente, no que concerne à compreensão da evolução das sociedades humanas no espaço e no tempo, optar por uma lógica de vulgata (redutora, valorativa, propagandística) em vez de uma racionalidade científica (complexificante, interpretativa, objectivante); atribuir aos professores e às escolas de um país com um regime democrático a função de avaliar — bonificar, penalizar e certificar — não apenas conhecimentos e competências mas, também, valores e comportamentos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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