Covid-19 em Portugal e no mundo: perspectivas para o futuro

Numa altura em que Portugal aparenta estar em contraciclo com os outros países no que respeita às subidas e descidas da incidência, em que direcção evoluirá o vírus, quais as consequências para nós e que estratégias de protecção temos ao nosso dispor?

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O novo coronavírus não tem parado de surpreender e estamos muito gradualmente a aprender a conviver com ele Westend61/Getty Images

O número de casos confirmados de covid-19 em Portugal, desde que a pandemia começou, ronda agora os 5,3 milhões. Cerca de 6,2% destes casos são reinfecções (pessoas infectadas mais de uma vez). O número total de infecções é, no entanto, muito superior, sendo difícil conhecê-lo porque, por um lado, muitos infectados não têm sintomas e, por outro, ao fim de alguns meses a diminuição da concentração de anticorpos no sangue das pessoas que foram infectadas torna difícil reconhecê-las nos inquéritos serológicos.

No entanto, com base nestes inquéritos, podemos ampliar os 5,3 milhões para nos aproximarmos mais do número real de infecções. Este deve situar-se algures entre 6,5 e 7,4 milhões (tendo já as reinfecções em consideração), ou seja, 62% a 72% da população portuguesa teve já um encontro com o vírus SARS-CoV-2 causador da covid-19.

Se às infecções adicionarmos a vacinação, podemos concluir que a esmagadora maioria dos portugueses tem algum nível de imunidade contra o vírus. Actualmente, 93% dos maiores de cinco anos receberam a vacinação primária (em geral, duas doses), 84% com mais de 18 anos receberam uma dose de reforço e 62% dos portugueses maiores de 80 anos já fez o segundo reforço.

O panorama imunológico da população é complexo. Temos pessoas que foram infectadas antes da vacinação, pessoas infectadas depois, pessoas que foram vacinadas mas não foram infectadas, e uma pequena minoria infectada que nunca foi vacinada. Além disso, o tempo decorrido desde o último encontro com o vírus (ou com a vacina) varia entre as pessoas e, como sabemos, ao longo do tempo ocorre decaimento dos anticorpos gerados, quer pela vacina, quer pela infecção. Felizmente, uma segunda linha protectora do nosso sistema imunitário — as células de memória B e T — é muito menos afectada pela passagem do tempo e, em geral, evita que uma mera infecção possa transformar-se numa forma de doença grave.

Em que direcção evoluirá o vírus face a este panorama, quais as consequências para nós, que estratégias de protecção estão ao nosso dispor?

A Ómicron e suas subvariantes

Uma vez que a maioria da população já tem algum nível de protecção, o vírus é beneficiado se tiver mutações que lhe permitam fugir aos anticorpos humanos que neutralizam a infecção. Para o vírus, ainda mais vantajoso do que tornar-se mais transmissível (por exemplo, aumentando a carga viral nas nossas vias respiratórias) é a aquisição de mutações que tornem difícil aos anticorpos bloquearem a sua multiplicação depois de o inalarmos. Estas mutações diminuem também a sensibilidade do vírus à terapêutica com anticorpos monoclonais, tendo, por isso, implicações para o tratamento dos doentes.

Foi esta a grande vantagem que a variante Ómicron apresentou quando nos invadiu em Dezembro de 2021. As “soluções” da Ómicron para fugir aos nossos anticorpos abriram ao vírus todo um novo universo de humanos vulneráveis ao seu dispor. Em Portugal, só em Janeiro e Fevereiro de 2022, ocorreram 1,97 milhões de casos confirmados de covid-19 causados pela Ómicron, quando, até essa data, tinham ocorrido apenas 1,42 milhões por todas as variantes anteriores. Isto dá bem ideia das vantagens que as mutações da Ómicron trouxeram ao vírus. A primeira versão da Ómicron foi designada por BA.1 e reinfectou muitos portugueses que já tinham sido infectados por uma das variantes anteriores do vírus (Wuhan, Alfa, Delta).

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Shanghai, China REUTERS/Aly Song

A vantagem que as sucessivas versões da Ómicron têm apresentado, umas em relação às outras, é esta capacidade de fugir aos anticorpos que possuímos, devido a uma infecção anterior ou à vacinação. A subvariante BA.2 da Ómicron chegou a Portugal em Fevereiro de 2022. A BA.5 chegou em Abril e, em menos de dois meses, tornou-se dominante. Presentemente, representa mais de 90% dos casos em Portugal, segundo os investigadores do Instituto Dr. Ricardo Jorge, e está a invadir a Europa Ocidental e a América do Norte. É provável que a BA.5 venha a ser temporariamente dominante em todo o planeta.

As subvariantes da Ómicron, BA.1, BA.2 e BA.5, contudo, causaram uma proporção muito menor de casos de doença grave do que as variantes anteriores, em grande parte graças ao facto de estarmos todos vacinados. Em Portugal, no período da Delta (Junho a Dezembro de 2021), o quociente entre o número de pessoas que estavam internadas com covid e o número de casos ocorridos nos dias anteriores variou entre 0,25 e 0,5. Este quociente caiu para 0,05 a 0,1 quando chegou a Ómicron. Além disso, a percentagem de pessoas internadas que necessitam de cuidados intensivos desceu de cerca de 15%, no período da Delta, para 5% durante a Ómicron. A letalidade causada pela Ómicron também é muito inferior. Por exemplo, nos idosos com mais de 80 anos, a percentagem de óbitos entre os casos de covid-19 causados pela Ómicron tem oscilado entre 2 e 3%, e no tempo da Delta situava-se entre 6 e 15%.

O problema que a Ómicron criou deve-se ao enorme número de infecções que é capaz de causar. Mesmo que apenas uma percentagem muito pequena dos casos apresente gravidade, esta percentagem aplicada a centenas de milhares de casos acaba por originar um impacto hospitalar preocupante. Recordemos que no pico da onda da Ómicron, em Janeiro de 2022, tivemos 60 mil novos casos por dia(!), apesar da elevada cobertura vacinal e de medidas restritivas em estado de calamidade. Este pico foi muito superior a qualquer onda causada pelas variantes anteriores do vírus (a Alfa, com o pico de 13 mil casos em Janeiro de 2021, antes da vacinação em massa; a Delta chegou a quatro mil casos por dia em Julho do mesmo ano).

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O processo evolutivo da Ómicron difere das variantes anteriores do vírus. Estas surgiram sem continuidade (genética ou geográfica) aparente e caracterizaram-se por ter cada vez maior transmissibilidade. A Ómicron tem evoluído de forma diferente, mais parecida com os quatro coronavírus que nos causam constipações leves todos os Invernos. Estes coronavírus, mais benignos que o SARS-CoV-2, podem reinfectar-nos em Invernos sucessivos, porque vão mutando gradualmente e, assim, conseguindo fugir aos anticorpos que eles próprios nos tinham originado em Invernos anteriores. Ou seja, com todos os problemas que nos criou, a Ómicron aparenta, no entanto, ter enveredado por um processo evolutivo mais semelhante ao dos outros coronavírus humanos.

Isto ajuda-nos de alguma forma a prever o que é que ainda nos espera?

Perspectivas para a pandemia

Presentemente, a incidência da covid-19 em Portugal encontra-se em trajectória descendente. À data em que escrevo, observa-se uma média diária de cerca de 4900 casos, quando há uma semana eram 6000 casos. Estamos com uma média diária de 15 óbitos, quando há uma semana eram 17 e, nos hospitais, a tendência de ocupação pelos doentes covid é também decrescente. Em contraste, nos países europeus, a tendência da incidência é de subida, pressionada pela chegada das subvariantes BA.4 e BA.5. O impacto hospitalar por covid-19 em quase toda a Europa é já muito visível, apesar de estarmos em pleno Verão.

Curiosamente, desde Abril que Portugal aparenta estar em contraciclo com os outros países no que respeita às subidas e descidas da incidência. Entre Fevereiro e Abril era moderada no nosso país. Nessa altura, países como a Alemanha, Áustria, França e Reino Unido tinham vagas epidémicas. Com o fim da obrigatoriedade das máscaras (21 de Abril), associado à chegada mais precoce da BA.5 a Portugal, o número de casos subiu para uma sexta vaga, enquanto os outros países estavam em descida. Presentemente, assistimos a tendências inversas: em palavras simples, agora nós descemos e eles sobem.

Não é possível prever quando surgirão novas variantes ou subvariantes do vírus. Presentemente, acompanhamos com interesse a BA.2.75 (outra subvariante da Ómicron), a qual invadiu algumas províncias da Índia onde a BA.5 não domina. Não sabemos ainda se poderá substituir a BA.5 na Europa e as suas características biológicas estão a ser intensamente estudadas. É provável que as futuras versões do vírus se continuem a caracterizar por fugir aos anticorpos que já quase todos possuímos, continuando no futuro a causar novas ondas epidémicas.

As reinfecções serão cada vez mais frequentes e deverão dominar a epidemiologia da covid-19. A amplitude das futuras ondas epidémicas e a carga de doença a que darão origem vai ser governada por dois factores: a frequência com que as novas subvariantes surgirem e a capacidade de escaparem ao nosso sistema imunitário.

Relativamente à frequência com que surgirão, pouco podemos fazer. Se for alta, quando estivermos a decrescer de uma onda epidémica, pode surgir uma nova variante que voltará a causar um ressurgimento da transmissão e uma nova onda epidémica. A situação é muito diferente da gripe, com a qual a covid-19 por vezes foi comparada. As épocas gripais alternam regularmente entre os hemisférios da Terra de forma sazonal, previsível, existindo uma rede de vigilância laboratorial que permite recomendar a formulação das vacinas para o próximo Inverno.

Até agora, o vírus SARS-CoV-2 não tem tido esta regularidade. É bastante mais transmissível que o vírus da gripe e, ao contrário deste, pode manter o famoso R(t) sustentadamente acima de 1 (cada infectado contagia mais do que uma pessoa) em qualquer altura do ano.

Relativamente à resposta do nosso sistema imunitário às futuras variantes, ainda temos um instrumento que permite manter a nossa protecção elevada: a vacinação. Esta é a principal razão pela qual a covid-19 não foi mais devastadora em termos de óbitos, sequelas, absentismo e, de um modo geral, sofrimento. A maioria dos países está a utilizar a vacinação numa estratégia de protecção contra doença grave, dando especial atenção aos grupos da população mais vulneráveis.

Nos primeiros meses pós-vacinação, a vacina protege contra infecção e transmissão, mas esta protecção decai com o tempo – ao fim de quatro a cinco meses, a protecção contra infecção por Ómicron é muito reduzida. Contudo, a protecção conferida contra doença grave mantém-se elevada, em especial com o reforço vacinal (3.ª dose). Para os mais idosos, existe já evidência de que um segundo reforço (4.ª dose) diminui ainda mais o risco de hospitalização e óbito e, por isso, a sua toma na altura certa é altamente recomendável. Portanto, ainda dispomos de um medicamento preventivo, capaz de diminuir o risco de consequências muito graves e, nos tempos que se avizinham, tudo indica que devemos tirar partido dele.

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O que aprendemos até agora diz-nos que as vacinas deverão proteger de forma robusta contra doença grave e morte, mas é improvável que evitem totalmente a propagação do vírus Miguel Manso

Perspectivas para a vacinação

Logo que se tornaram evidentes as características acima referidas da variante Ómicron, iniciaram-se as tentativas de formulação e ensaio de novas vacinas. Estas integraram uma componente BA.1, a primeira versão da Ómicron, sozinha ou combinada com a componente do vírus original que a velha vacina tem usado. Os primeiros ensaios foram feitos em animais e num pequeno número de humanos. Pretendia-se saber se administrar a dose de reforço (em pessoas já vacinadas) com a nova vacina levaria a uma subida do nível de anticorpos contra a Ómicron que fosse superior a um reforço dado com a vacina que temos utilizado.

A resposta é sim, mas não tanto como seria desejável, lançando dúvidas sobre as vantagens de redireccionar toda a produção mundial de vacinas para a nova formulação. Do ponto de vista laboratorial, a mudança não oferece dificuldades maiores. Porém, é necessário estar seguro de que justifica os custos e atrasos associados à mudança para uma produção massiva de vacinas com a nova formulação. A BA.1 já praticamente desapareceu e o vírus continua a evoluir.

É possível que um reforço com uma vacina integrando a subvariante BA.5 seja presentemente a mais adequada. Decorre investigação muito activa sobre a resposta imunitária contra esta subvariante após um reforço vacinal que tenha uma componente BA.1 ou BA.5, quer isoladas, quer em combinação com a versão original do vírus.

Qualquer que seja a formulação do próximo reforço vacinal, é pouco provável que seja uma solução duradoura contra infecção ou reinfecção, tal como é pouco provável que o vírus deixe de evoluir. O que aprendemos até agora diz-nos que as vacinas deverão proteger de forma robusta contra doença grave e morte, mas é improvável que evitem totalmente a propagação do vírus. Muitas vidas continuarão a ser salvas, mas a população não deve alterar demasiado os comportamentos que evitam a infecção.

Devemos continuar a preferir os espaços abertos e ventilados e continuar a preferir o uso de máscara em locais onde inalamos o ar que foi expirado há pouco tempo por outras pessoas. A infecção natural pelo SARS-CoV-2 comporta a possibilidade real de sequelas de longo prazo, as quais começam agora ser melhor compreendidas.

Um levantamento recente do Office of National Statistics do Reino Unido estimou que 4 a 5% dos infectados por Ómicron desenvolve formas de covid-19 de longa duração e já existe evidência de que, pelo menos nos idosos, o risco de sequelas aumenta com o número de reinfecções, numa espécie de relação dose-resposta: quanto mais reinfecções, maior o risco de doença cardiovascular, renal e pulmonar, entre outras.

A investigação de novas vacinas prossegue, constituindo a principal esperança para sairmos de um futuro ciclo de ondas epidémicas onde, apesar da redução progressiva de doença grave, teremos sempre pressão hospitalar e vítimas fatais. As vacinas do futuro, idealmente, tenderão a proteger contra toda a grande família de coronavírus a que o SARS-CoV-2 pertence, incluindo os que estão em reservatórios animais, mas podem causar futuras zoonoses nos humanos.

As vacinas do futuro poderão ser também as que bloqueiam o vírus nos locais onde ele entra – as mucosas do trato respiratório superior. As vacinas intramusculares dificilmente alcançarão este objectivo, mas vacinas administradas pelo nariz, por exemplo através de gotas ou de aerosol, poderão ter maior sucesso em evitar a infecção e a transmissão. Há várias dificuldades técnicas e financeiras que estes desafios colocam, mas decorrem já ensaios com uma dúzia de vacinas deste tipo. É importante que prossigam e que possamos ter resultados para analisar.

Não parece possível efectuar previsões gerais muito para além destes pontos. O novo coronavírus não tem parado de surpreender e estamos muito gradualmente a aprender a conviver com ele.

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