Matemática na escola: uma arma contra o populismo

Incito a sociedade portuguesa a não encarar com desconfiança as alterações, que entrarão em vigor a partir do próximo ano letivo, às aprendizagens essenciais de matemática no ensino básico.

Será difícil para alguns (talvez muitos) leitores do PÚBLICO assimilar sem um nó no estômago a recente decisão do Supremo Tribunal dos EUA relativamente ao aborto. Diversos cronistas e opinantes apontam o dedo a Donald Trump e à ignorância e boçalidade dos seus apoiantes. Porém, os juízes responsáveis por esta aparente “crise” civilizacional nos EUA são pessoas inteligentes e cultas. Como compreender a decisão dos juízes que votaram contra o direito reconhecido em 1973 (caso Roe vs. Wade), decerto contaminada por fatores pessoais, idiossincráticos?

Ninguém nasce conservador ou liberal, com o preconceito A ou B. Nasce-se com um cérebro dotado de uma fantástica plasticidade, no qual o neurónio X recebe habitualmente informações ("disparos” eletroquímicos) de, digamos, mil neurónios vizinhos e transmite uma nova informação a outros dois mil. Contribui assim para estabelecer um circuito de milhares ou milhões de neurónios de processamento informacional, gerando um determinado pensamento. No entanto, devido às circunstâncias ambientais, esse neurónio pode vir a perder o contacto com alguns dos mil neurónios precedentes e/ou dos dois mil que se seguem na linha comunicacional, e o tipo de raciocínio e as memórias mudam. A alteração dos padrões de ligação entre os neurónios cerebrais é fácil na infância e difícil no estádio adulto.

Imaginemos um jovem que ouviu repetidamente ao longo de anos, no seio de familiares e colegas, que “o aborto é pecado” ou “a vida humana começa no momento da fecundação”. Esta mensagem torna-se um padrão estável de disparo, de comunicação nervosa num conjunto específico de células cerebrais, materializando a famosa regra de Hebb: neurónios que se ativam juntos, ligam-se juntos e sobrevivem juntos; a conexão física e química entre os neurónios X, Y e Z cimenta-se. Ou seja, é muitíssimo provável que esse jovem, aos 20 anos de idade, manifeste uma posição dogmática quanto à legitimidade do aborto. Haveria uma forma de ele entrar nessa idade com uma mentalidade (mais) aberta, eventualmente com uma opinião favorável à interrupção voluntária da gravidez?

As pessoas que simpatizam e acabam por votar num partido como o Chega não foram convencidas e reorientadas pelo discurso propalado pelos agentes políticos. Votam num partido populista porque este se revela uma caixa de ressonância para ideias preconcebidas e bem firmes na mente do seu eleitorado. São pessoas que terão ficado aliviadas quando tal partido surgiu em cena, uma vez que a demagogia capitaliza o hábito (porque menos exigente em termos energéticos) da nossa mente de procurar ou focar-se nas evidências que confirmam uma crença, ignorando as que podem falsificá-la. Por conseguinte, numerosas pessoas pensam que os imigrantes cometem muitos crimes ao selecionarem notícias acerca de assaltos a lojas ou casas perpetrados por imigrantes, passando ao lado da conclusão racional de que o número de locais assaltados por nativos é claramente superior.

Este viés cognitivo, designado viés de confirmação, é um entre vários enviesamentos ou falácias que afetam o raciocínio humano seja no cérebro de um servente, seja no de um juiz, produto de uma evolução “imperfeita”, como discorri num dos meus mais recentes trabalhos. Os cientistas estão conscientes destes vieses e tentam domá-los, mantendo-se fiéis ao conhecido argumento de Karl Popper sobre o que distingue a verdadeira ciência: os proponentes de uma hipótese explicativa do mundo devem procurar deliberadamente dados que possam conduzir à sua rejeição e aceitá-la unicamente se sobreviver a esse teste. Pensamento crítico. A instituição que pode assegurar aos cidadãos adultos de um país um duradouro proveito de ferramentas cognitivas como a lógica, o ceticismo, correlação e a causalidade é a escola.

“Até 2026 iremos implementar uma política económica que sustente uma subida de 15% do salário médio”. Esta afirmação podia ser proferida por um qualquer primeiro-ministro europeu. Suponhamos que o salário médio será 1600 € em 2026. Para alguém com uma adequada literacia matemática, uma média de 1600 diz muito e, ao mesmo tempo, pouco. Diz por exemplo que a riqueza desse país é inferior à da Alemanha. Mas não diz quantos trabalhadores auferem (na altura) exatamente 1600 €, nem quantos ganham mais (alguns) ou menos (a maioria); diz que valores atípicos na amostra de dados, por exemplo vencimentos na ordem dos 10.000 €, distorcem notoriamente o valor ponderado.

A atitude intelectual mais honesta é acompanhar a apresentação da média com a distribuição gráfica dos números que lhe deram origem, ou falar numa outra medida de tendência central, a mediana. Por isso, incito a sociedade portuguesa a não encarar com desconfiança as alterações, que entrarão em vigor a partir do próximo ano letivo, às aprendizagens essenciais de matemática no ensino básico. No documento curricular que as oficializa assume-se como lema central a “Matemática para todos”, visando entre outras competências uma sólida literacia estatística, com a qual os alunos serão capazes de usar dados para produzir informação de modo a conhecer o que os rodeia, fundamentar escolhas e colocar novas questões.

É também realçado o pensamento computacional, que “pressupõe o desenvolvimento, de forma integrada, de práticas como a abstração, a decomposição [e] o reconhecimento de padrões […]”. Acalentemos a expetativa que o desenvolvimento da capacidade de raciocinar logicamente, de formular hipóteses e analisar criticamente situações e as ideias produzidas por outros, venha a impregnar rapidamente o ensino da geografia e da história.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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