“Temos de olhar para o tráfico de animais como olhamos para o tráfico de armas ou drogas”

A directora-executiva da Wildlife Justice Commission, Olivia Swaak-Goldman, esteve na Conferência dos Oceanos e falou ao PÚBLICO do trabalho desta organização, que faz investigações secretas para desmantelar redes de tráfico de animais selvagens.

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Veterinário aproxima-se de um elefante morto no Botswana Reuters

Olivia Swaak-Goldman é a directora-executiva da Wildlife Justice Commission (WJC), uma organização que trabalha para desmantelar redes que cometem crimes contra a vida selvagem (nomeadamente tráfico de animais terrestres e aquáticos). Sediada em Haia, nos Países Baixos, a WJC é recente — foi formada em 2015 —, mas tem na sua equipa advogados, analistas criminais, investigadores e outros especialistas que estão envolvidos no combate ao crime organizado há muitos anos.

A organização, que trabalha em articulação com entidades governamentais, realiza investigações no terreno, sendo que os seus elementos responsáveis operam como “infiltrados”: fazendo-se passar por traficantes de animais, juntam-se a redes criminosas, de modo a que possam recolher informações privilegiadas. Em sete anos, a WJC, que faz investigações em vários continentes, diz já ter conseguido desmantelar 40 redes criminosas e ajudar a que 180 indivíduos fossem processados. Algumas dessas pessoas ainda não foram a tribunal, mas todas as que já foram terão sido condenadas.

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Olivia Swaak-Goldman, directora-executiva da Wildlife Justice Commission DR

Olivia Swaak-Goldman marcou presença na Conferência dos Oceanos da Organização das Nações Unidas, de 27 de Junho a 1 de Julho em Lisboa, onde, num evento paralelo, discorreu brevemente sobre crime e corrupção no mar. Ao PÚBLICO, a responsável fala sobre o trabalho da WJC e a forma como este vai ficando ao mesmo tempo mais fácil e mais desafiante à medida que a organização cresce em termos de reputação.

A norte-americana defende que os países e governos têm de olhar para os crimes contra a vida selvagem como uma questão de crime organizado. Só assim, diz, existirá o enquadramento legal necessário para serem detidas as pessoas que orquestram as operações de tráfico, não apenas os criminosos “de segunda categoria” (palavras de Swaak-Goldman) que fazem o dito trabalho sujo.

Quais são os principais desafios associados ao trabalho da WJC?
O principal é sempre mantermos em segurança os elementos da equipa que colocamos no terreno. Felizmente, temos na organização várias pessoas que já fizeram as investigações multinacionais de vários anos que nós fazemos. Essas pessoas sabem, portanto, quais são os melhores procedimentos. Outro desafio tem que ver com os governos. De modo a que possamos trabalhar de perto com eles, temos de garantir que conseguimos conquistar a sua confiança. Até ver, isso tem corrido muito bem.

A organização trabalha em todos os continentes ou há alguma região geográfica a que esteja mais atenta?
Trabalhamos no mundo inteiro. Seguimos o percurso a que os traficantes submetem as mercadorias comercializadas e esse percurso é grande. Se queremos deter e processar com sucesso os principais indivíduos que estão a destruir a nossa biodiversidade, o nosso trabalho tem de ser feito a uma escala global. Neste momento, todas as pessoas que conseguimos levar a tribunal foram condenadas. Orgulha-nos muito termos uma taxa de 100%, porque isso é o que se quer, no fundo. Queremos que estes criminosos comecem a fazer outra coisa, pois só assim a biodiversidade poderá recuperar.

Pode dar um ou dois exemplos de investigações que tenham culminado em detenções?
Recentemente, trabalhámos com os serviços aduaneiros da Nigéria para desmantelar uma rede criminosa que, acreditamos nós, estava a traficar grandes quantidades de marfim de elefante e escamas de pangolim. Conseguimos ajudar o Governo a fazer o que era necessário para realizar uma investigação longa e minuciosa. E agora os traficantes estão a ser processados e o caso contra eles é muito forte. Esperamos, agora, que venham a ser condenados.

Também recentemente, trabalhámos com o Governo da Tailândia para desmantelar uma rede criminosa que estava a traficar animais vivos. No fundo, estavam a ser vendidos como animais de estimação alguns animais exóticos (como orangotangos e algumas espécies de tigres) que são muito vulneráveis e estão em vias de extinção. Essa rede foi desmantelada e agora estão a ser preparadas as acusações.

Deu dois exemplos que remetem para vida selvagem terrestre. Pode dar um ver que remeta para vida marinha?
Entre 2016 e 2018, ajudámos as autoridades da Índia e da Malásia a travar traficantes que estavam a comercializar ilegalmente tartarugas e cágados de água doce. Esses traficantes foram, uma vez mais, levados a tribunal e condenados. Já conseguimos desmantelar 40 redes criminosas e levar a 180 detenções. Sucede que, em muitos casos, as pessoas ainda não foram a tribunal, pelo que infelizmente não posso dar muitos detalhes.

É mais comum estas redes criminosas operarem em nações menos desenvolvidas, onde a legislação é talvez menos forte?
Estes esquemas de tráfico são intercontinentais, como as nossas investigações. As redes criminosas vão para sítios onde o combate à sua actividade é menos robusto. E isso pode ter que ver com várias coisas. Nalguns países, pode faltar a legislação adequada. Noutros, pode existir corrupção (ou, então, combater crimes contra a vida selvagem pode não ser uma prioridade). É esse o tipo de contexto que as redes criminosas procuram.

Quando, numa determinada região, desenvolvemos não só a capacidade de actuação das autoridades, mas também a vontade política, a aplicação da lei passa a ser mais significativa e as redes criminosas mudam-se para outro sítio. Nós temos de nos mudar com elas, para que também esse novo território fique mais forte e, no fim, os criminosos não tenham para onde ir.

Já tivemos criminosos que nos disseram coisas como: “Isto está a ficar muito perigoso. Há um risco muito grande de ser apanhado, vou começar a fazer outra coisa.” Temos vindo a demonstrar que é possível desmantelar estas redes.

À medida que a vossa reputação cresce, fica mais difícil continuarem a fazer o vosso trabalho?
Sim e não. Por um lado, torna-se mais fácil, porque os governos vêem o valor daquilo que fazemos e ficam com mais vontade de trabalhar connosco. Por outro lado, torna-se mais desafiante, porque os criminosos de segunda categoria, chamemos-lhes assim, já foram todos detidos — ou então já começaram a fazer outra coisa. Também reparamos que algumas redes começam a ficar mais cuidadosas: começam a mudar o seu modus operandi para não correrem tantos riscos.​

Mas voltando à questão dos governos: originalmente, pensámos que iríamos abordar os governos e eles não seguiriam necessariamente as nossas recomendações. Na verdade, temos visto que eles querem muito combater os crimes contra a vida selvagem. Só precisam de ter os recursos para isso. Nem todas as autoridades nacionais voltadas para questões de vida selvagem sabem realizar trabalho investigativo, o que faz sentido. Nós ajudamos essas autoridades a fazer esse trabalho investigativo e a chegar aos indivíduos-chave, isto é, os orquestradores, os grandes responsáveis pela actividade criminosa. É importante apanhar os caçadores furtivos, mas também há que ir atrás dos indivíduos que estão, à distância, a organizar essa actividade.

O que está a faltar em termos legislativos para estes crimes serem combatidos?
É muito importante que se olhe para os crimes contra a vida selvagem como uma questão de crime organizado. Vou dar o exemplo de Hong Kong, que, em termos de mercado, é um destino forte para algumas espécies aquáticas que estão em vias de extinção. Até há pouco tempo, a polícia não podia fazer grande coisa quando navios que estavam a traficar animais chegavam ao porto, porque isso não era considerado crime organizado. Mas há um ano e meio foi aprovada uma lei que fez dos crimes contra a vida selvagem crimes organizados graves. Desde então, o Governo de Hong Kong tem autoridade para pôr em prática certas técnicas de investigação.

Posso dar um exemplo. Se um navio com barbatanas de tubarão chegar ao porto e, por algum motivo, for apreendido, o Governo pode pegar no plástico em que as barbatanas estão embrulhadas e fazer uma análise das impressões digitais. As autoridades já podiam fazer isso no passado quando se tratava de armas, mas não quando se tratava de animais selvagens.

Precisamos de uma mudança de chip: temos de olhar para estes atentados contra a vida selvagem não só a partir de uma perspectiva de conservação da natureza, mas também a partir de uma perspectiva jurídica. Se os governos reconhecerem estes crimes como crime organizado — e aplicarem a legislação que se exige quando é de crime organizado que se fala —, isso irá permitir-nos chegar aos criminosos de alto nível. Nalguns países, são necessárias provas de que o indivíduo está na sala com o produto em questão. Nunca chegaremos aos grandes criminosos enquanto essa legislação não for retrabalhada.​

Passo a explicar o que acabei de dizer. Se uma pessoa ligada ao tráfico de barbatanas de tubarão está a orquestrar as operações a partir da sua casa no campo, nunca chega a estar na sala com as barbatanas. E nalguns países essa pessoa não pode ser processada sem que haja uma prova — uma fotografia — de que esteve com o produto.

Os países precisam de olhar para estes crimes a partir de uma perspectiva de crime organizado. Temos de olhar para o tráfico de animais como olhamos para o tráfico de armas ou drogas.

Qual é o principal aspecto por detrás do sucesso das vossas investigações?
Demoramos o nosso tempo. Passamos três a quatro anos a investigar um caso. E documentamos tudo: criamos um quadro muito completo daquilo que está a acontecer. É importante garantirmos que temos provas robustas. De outro modo, os governos não conseguem convencer os procuradores a levar os casos a tribunal.

Recentemente, as autoridades chinesas desmantelaram uma rede responsável pelo contrabando de grandes quantidades de marfim de elefante [a WJC indica que, entre 2013 e 2019, foram transportadas 20 toneladas da Nigéria para a China] e fizeram tudo o que é preciso para derrubar estas grandes redes. Passaram sete anos a investigar e recolher provas. No fim, foram processados 17 indivíduos, incluindo os grandes tubarões. Eles não só foram condenados a prisão perpétua, como todos os seus bens foram apreendidos. As casas, os carros... Tudo o que haviam comprado com o dinheiro ganho ilegalmente foi confiscado. Isso foi excelente: para assustar as pessoas processadas, há que se ir atrás dos seus bens.