Como o cérebro influencia o seu intestino

As bactérias intestinais, tal como as próprias células da parede intestinal, produzem neurotransmissores — o que é influenciado não só pelo tipo de alimentação, mas também pela qualidade e quantidade dos microrganismos que habitam no nosso intestino.

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Miguel Manso

Quem nunca sentiu “borboletas na barriga”? Ou aquele “instinto” que parece provir do intestino? Estes são os primeiros indicadores de que existe algum tipo de ligação entre as funções intestinais e o funcionamento cerebral. Certamente reconhecerá ainda outros sinais no seu dia-a-dia que ajudam a fundamentar a existência desta interligação.

A essa comunicação entre os dois órgãos chamamos o “eixo intestino-cérebro” (eixo I-C; gut-brain axis). Na verdade, são inúmeros os estudos que têm vindo a ser realizados nos últimos anos — maioritariamente em modelos animais — que têm ajudado a encontrar muitas dessas relações, bem como a compreender alguns dos meandros dos mecanismos subjacentes a esta rede de comunicação bidireccional (que funciona nos dois sentidos!) entre o sistema nervoso intestinal e o sistema nervoso central (SNC).

Em primeiro lugar, importa compreender que esta comunicação se faz não só através da existência de uma ligação anatómica (através dos nervos que ligam o intestino e o cérebro: articulação entre o nervo vago e os ramos simpático e parassimpático do sistema nervoso autónomo e o sistema nervoso entérico), mas também através de relações endócrinas, humorais, metabólicas e imunitárias. Tal confere a capacidade para articular a componente cognitiva e emocional do ser humano ao desempenho das funções intestinais periféricas e vice-versa.

Comecemos pelo início, como deve ser. O SNC é o sistema que regula todas as funções do nosso organismo. Anatomicamente está ligado ao intestino principalmente através do nervo vago. Este comunica com o sistema nervoso entérico (SNE; intestinal). O sistema nervoso autónomo (SNA; simpático e parassimpático), que controla principalmente a secreção de glândulas e o funcionamento dos músculos lisos e cardíaco, também intervém nesta comunicação (pois o nosso trato gastrointestinal é muito rico em glândulas e musculatura lisa), modulando-a e aperfeiçoando-a de acordo com os estímulos internos e externos. Resultado final: o SNC, o SNE e o SNA formam uma densa e extensa rede de neurónios intercomunicantes da qual resulta o controlo afinado daquilo que é a função intestinal e parte da cerebral.

Mas, como referi antes, o SNA “absorve” os estímulos internos e externos e ajusta o funcionamento de diversos órgãos. Ora, como é sabido, um dos grandes estímulos é o stress. Os estudos demonstram que o stress inibe os estímulos transmitidos pelo nervo vago, resultando em alterações gastrointestinais. De igual modo, doentes com síndrome do intestino irritável ou doenças inflamatórias intestinais têm um tónus vagal diminuído. Mais interessante ainda foi a verificação, num modelo animal, de que a toma de um probiótico (Lactobacillus rhamnosus) poderia melhorar os efeitos de cortisol (hormona do stress), desde que o nervo vago não estivesse lesionado (porque se estivesse lesionado, o probiótico perdia o seu efeito!).

Para além da relação anatómica, a microbiota intestinal também contribui para os níveis de neurotransmissores circulantes no sangue e são estes neurotransmissores que fazem uma parte significativa da comunicação entre as várias partes do organismo e contribuem para muitas das emoções e da modulação de aspectos psicológicos, como é o caso da serotonina e do GABA por exemplo (que controlam o medo, a ansiedade e a depressão/bem-estar). As bactérias intestinais, tal como as próprias células da parede intestinal, produzem neurotransmissores — o que é influenciado não só pelo tipo de alimentação, mas também pela qualidade e quantidade dos microrganismos que habitam no nosso intestino. A toma de pré e probióticos influencia de forma muito importante esta via de comunicação. Os estudos apontam que a disbiose (alteração da microbiota intestinal) está presente e relacionada não só com doenças infecciosas, mas também com variadas doenças gastrointestinais e do SNC (p.e. autismo, Parkinson, esclerose múltipla, Alzheimer). Mais uma vez, aqui a disbiose pode ser uma causa ou efeito, pelo que se deve manter uma alimentação e um estilo de vida que preservem uma boa população residente no intestino.

Os próprios produtos da digestão originados pela microbiota também contribuem para a comunicação no eixo I-C. Este efeito advém dos ácidos gordos de cadeia curta (AGCC), e para ele contribuem essencialmente as leguminosas, a fruta e os hortícolas e também dos pré e probióticos naturalmente presentes nos alimentos ou ingeridos como suplementos. Os AGCC modulam o apetite e contribuem para a manutenção da barreira que separa o sangue do cérebro (tão importante para isolar o cérebro de agentes infecciosos e substâncias inflamatórias!).

Para concluir, há ainda de realçar a relação entre o eixo I-C e o sistema imunitário. O intestino e a sua microbiota é que “decidem” o que é absorvido e que vai passar para a circulação sanguínea. O intestino é revestido por milhões de células do sistema imunitário de forma a combater tudo o que passa por essa barreira indevidamente. Mas a agressão repetida ao intestino — através de uma alimentação desadequada! — faz com que, pouco a pouco, esta barreira vá sendo penetrada e cada vez mais substâncias nocivas vão passando para a corrente sanguínea. Uma destas substâncias é um lipopolissacarídeo (LPS) produzido pelas bactérias intestinais que deveriam existir em reduzida quantidade, mas que, fruto do sedentarismo, da má alimentação e do “errado” estilo de vida, acabam por prevalecer na microbiota intestinal. O LPS exerce efeitos neuroinflamatórios, contribuindo para as doenças neurológicas que antes mencionei.

Em suma, não será de estranhar que estratégias terapêuticas de relaxamento, mindfulness, meditação e ioga, ou a terapia cognitivo-comportamental, e os medicamentos como antidepressivos/ansiolíticos, até óleos essenciais e florais, entre outras, possam melhorar não só aspectos emocionais e psicológicos como também a sintomatologia gastrointestinal e a resolução de quadros patológicos que exijam respostas mais exigentes do sistema endócrino e/ou imunitário.

Uma alimentação variada principalmente em fruta, leguminosas e hortícolas, enriquecida em Ómega-3 (frutos gordos, sementes — sobretudo nozes, linhaça e chia e também o pescado) e polifenóis (cacau, chá verde, azeite e café), suplementada em pré ou probióticos (se necessário), aliada a um estilo de vida bem equilibrado entre níveis de stress e prática de actividade física, todos contribuem para os vários ângulos do eixo I-C e dessa forma, para uma melhor saúde global, proveniente quer do cérebro, do intestino.

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