Eles criaram “os filhos com a pesca” e querem decidir o futuro dos oceanos

Representantes de mais de 30 organizações de pesca tradicional e de pequena escala trouxeram à Conferência dos Oceanos um apelo à acção para serem incluídos na gestão mundial dos oceanos.

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A pesca de pequena escala alimenta 500 milhões de pessoas a nível mundial ZOHRA BENSEMRA/Reuters

Era uma pequena Babel movimentada aquela que se instalou logo de manhã no Restaurante Tejo, no edifício do Oceanário, com o objectivo de dar voz à pesca artesanal no contexto da Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, que decorre esta semana em Lisboa. Representantes de mais de 30 associações de pesca tradicional e de pequena escala de África, das Américas, da Ásia e da Europa lançaram nesta terça-feira um apelo à acção para serem integrados em todas as tomadas de decisão sobre a pesca e os oceanos.

“A única coisa que pedimos é a participação em todas as decisões que trazem mudança [para as pescas e os oceanos]”, disse Felicito Núñez, pescador das Honduras, representante da CoopeSoliDar, uma cooperativa meso-americana que defende a conservação e os direitos humanos, e que foi um dos primeiros intervenientes da sessão. “Temos o direito a decidir e a participar em cada decisão para evitar conflitos.”

Os pescadores tradicionais e de pequena escala são o maior grupo de pessoas que usam o oceano e os seus recursos, além de alimentar 500 milhões de pessoas em todo o mundo, avisam as associações. “No entanto, durante os processos de decisão, as suas necessidades surgem em segundo plano em relação aos interesses das grandes corporações e geralmente são excluídos das decisões políticas que afectam, de forma desproporcional, as suas vidas e o seu sustento”, segundo um comunicado conjunto lançado pelas associações.

A participação de associações de pesca tradicional na Conferência dos Oceanos foi, por isso, uma oportunidade para inverter aquela situação da invisibilidade. A primeira exigência do apelo aos governos é que estes “assegurem o acesso preferencial e a co-gestão de 100% das áreas costeiras” às comunidades de pesca artesanal e de pequena escala.

Martilene Rodrigues, pescadora do Ceará, no Brasil, e representante do Movimento de Pescadores e Pescadoras Tradicionais daquele país, enumera as dificuldades que acontecem no terreno. “A gente está perdendo os nossos mangais, a nossa área de praia, os nossos rios estão sendo assoreados, está sendo uma devastação total do nosso território pesqueiro. A gente está lutando para não perder o que ainda temos e recuperar o que perdemos”, explicou ao PÚBLICO.

Soluções ou ameaças?

A mãe de Martilene Rodrigues não era pescadora, mas os tios e o marido são. “A gente criou os filhos com a pesca”, adiantou, explicando que usam canoas com velas para pescar, onde a vela é o motor e o combustível é o vento. Na sua comunidade, pesca-se marisco e peixe. “O nosso principal objectivo na luta é pelos nossos territórios, que a gente considera que não é só a terra, é a água, é a nossa tradição, a cultura, o modo de vida, tudo isso faz parte do nosso território, que a gente não quer perder”, referiu.

Para a pesca tradicional, uma das ameaças é a competição trazida pela economia azul, como a produção de energia no mar, a mineração marinha em profundidade, a pesca industrial e o turismo. “Os impactos negativos dos sectores mais fortes do mar e da terra põem em causa o futuro das comunidades costeiras. Qualquer novo uso do oceano deve ser guiado pela participação efectiva e a abordagem preventiva dos pescadores artesanais”, defende o documento.

“Há regiões de pesca que foram tão afectadas por decisões políticas, pelas mudanças climáticas, por uma sobreexploração, que realmente já não se pode viver da pesca”, alertou ao PÚBLICO, por sua vez, José Luis Carrillo Galáz, Presidente da Confederação Mexicana das Cooperativas Pesqueiras e Agrícolas.

Galáz é um pescador na região mexicana do Iucatão. Na declaração que deu no evento, explicou que o seu pai queria que ele fosse advogado e não pescador, com medo que o filho vivesse na pobreza. Mas a situação familiar e o amor ao mar falaram mais alto. “Era muito difícil para o meu pai manter três filhos na universidade, não havia dinheiro. Por isso optei pela pesca”, explicou-nos depois. “Nasci num lugar com mar. Desde pequeno, o que me divertia, a minha vontade, era nadar, estar no mar, pescar. A pesca é uma cultura”, contou.

As mulheres invisíveis

Mas os desafios são muitos. “A pandemia pôs-nos de joelhos pela falta de venda dos nossos produtos. Outro cenário difícil é a pesca ilegal. Outro é o contexto político onde as políticas públicas de muitos países estão distantes do que é a actividade pesqueira artesanal”, apontou o mexicano. Por isso a importância deste momento. “Os pescadores têm que ter uma voz em todos os contextos em que se fala da pesca e do meio ambiente, temos que ter uma voz no desenvolvimento, temos de participar nas decisões.”

Muitas das intervenções foram feitas por mulheres, que sublinharam a importância do seu trabalho numa actividade que frequentemente é vista como sendo feita apenas por homens. Uma das exigências do apelo lançado agora é que os governos garantam a participação das mulheres na pesca tradicional e de pequena escala e apoiem o seu papel na inovação do sector.

“Há muitas mulheres que foram invisibilizadas nos seus trabalhos enquanto pescadoras”, referiu Maria Carrillo, coordenadora da Associação de Mulheres Pescadoras e Processadoras de Camarão, da Costa Rica, durante a sua intervenção. “Fazemos parte da sociedade, sociedade essa que quer desenvolver o mundo”, disse a pescadora. “Se nos organizarmos enquanto mulheres, teremos maior oportunidade de nos empoderarmos.”

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