Prozis, vai um novo código? NOÇÃO10

As declarações de Miguel Milhão desencadearam uma discussão que se deveria debruçar sobre o que representa a ilegalização do aborto, mas o holofote está no debate sobre as influencers que retiraram a sua parceria com a Prozis e sobre como ser contra o aborto é apenas mais uma opinião inofensiva que não pode acarretar consequências, porque afinal a liberdade de expressão existe.

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Reuters/ELIZABETH FRANTZ

Hoje, o aborto deverá passar a ser ilegal em alguns estados dos EUA, os fetos podem tornar-se bebés, as mulheres podem viver, desde que caladas, e a natureza está a sarar. Que belo dia! Pelo menos assim o é para o fundador da Prozis, Miguel Milhão. Espante-se: um homem.

Admito que nada na publicação em questão me surpreende. O posicionamento pró-vida — desde que não sejam vidas de mulheres, atenção — tem raízes profundas num país de tradição católica conservadora como Portugal. Faz parte da doutrina defender o direito à vida humana. Faz parte da demagogia argumentar que estamos a matar crianças, quando, na verdade, estamos a sublinhar o quão desumanas são as mulheres aos nossos olhos. Afinal, a misoginia também anda de braços dados com o conservadorismo.

Subitamente, recuámos anos, décadas, séculos. E há quem aplauda. Há quem, finalmente, se sinta confortável para bradar a plenos pulmões a sua posição, porque terá outra voz que lhe fará eco. Vozes que, unidas, se confundem numa torrente de ódio à liberdade de escolha feminina e ganham forma, têm peso, tornam-se substanciais — porque, para nós, não são só palavras. Assim como a reversão de Roe vs Wade não é apenas uma posição jurídica, é uma posição política e ideológica.

De embrião, a feto, a bebé, a mulher, a mesmo que morta. Não, a minha mãe não me abortou quando ainda não era gente; mas agora que o sou, há quem me queira calada e quieta. Há quem me prefira dependente, condicionada e submissa. E não viver em liberdade não será o mesmo que estar morta? A vida é apenas um bem inviolável segundo as condições previamente descritas nesta parceria: um acordo tácito impingido à mulher e celebrado com a sociedade que, por pura benevolência e compaixão, permite que ela sobreviva. Mas nesta parceria, só uma das partes sai vitoriosa como seria de esperar numa sociedade patriarcal.

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E, no seio de uma discussão que se deveria debruçar sobre o que representa a ilegalização do aborto — não só para a mulher, mas também uma criança indesejada e inesperada e as condições que terá numa sociedade que não prima pelas melhores licenças de maternidade, cuidados pós‑natais nem apoios a mães em condições de pobreza —, o holofote está no debate sobre as influencers que retiraram a sua parceria com a Prozis e sobre como ser contra o aborto é apenas mais uma opinião inofensiva que não pode acarretar consequências, porque afinal a liberdade de expressão existe. Espante-se: não para as mulheres. A liberdade é algo muito escorregadia e, ao que parece, selectiva.

No entanto, retirar o foco da afirmação de Miguel Milhão e colocá-lo na posição das mulheres face a uma marca que é o seu ganha-pão também diz muito sobre a sociedade em que vivemos. O importante nunca será a posição ofensiva e misógina de um homem, mas antes arranjar uma forma de virar mulheres contra mulheres, incentivar o discurso de ódio e cimentar a descredibilização feminina. Mais uma terça-feira.

Por fim, para não dizerem que não vos ofereço nada a não ser histerismo e um discurso de feminista que odeia homens, aqui vai o meu código promocional: NOÇÃO10 — válido durante período ilimitado para os utilizadores que insistam em teimar contornar o cerne da questão: a violação dos nossos direitos fundamentais. O condicionamento da nossa liberdade. A restrição ao uso do nosso corpo.

E já agora para o Miguel. De nada.

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