Je suis Cláudia Simões

Neste caso, como no da Esquadra de Alfragide, ambos na Amadora, o sistema judicial demonstrou maior proatividade na condenação da violência policial. Mas várias coisas parecem fugir entre os pingos da chuva.

Soubemos esta semana que os três agentes envolvidos, em 2020, na agressão a Cláudia Simões – Carlos Canha, João Carlos Cardoso Neto Gouveia e Fernando Luís Pereira Rodrigues – vão a julgamento por vários ilícitos. Neste, como no caso da Esquadra de Alfragide, ambos na Amadora, o sistema judicial demonstrou maior proatividade na condenação da violência policial. Note-se que 76% das queixas contra agentes policiais na Amadora foram arquivadas entre 2014 e 2019, e que, não fosse a forte mobilização antirracista em torno destes casos, o quadro internacional do Black Lives Matter, assim como as críticas de agências internacionais, a versão policial da “queda” e da “tentativa de invasão de esquadra” ficariam muito provavelmente como a verdade. São sinais positivos, não fosse a fasquia tão baixa no que toca à condenação da violência policial. Mas várias coisas parecem fugir entre os pingos da chuva.

1. Em ambos os casos, por razões distintas, a acusação de discriminação racial cai. É inacreditável que dizer “preta, macacos, vocês são lixo, uma merda”, ao mesmo tempo que se violenta fisicamente uma pessoa, não seja considerado crime de discriminação perante a lei. Segundo o procurador do Ministério Público responsável pelo inquérito, Hélder Cordeiro, na sua leitura do artigo 240.º - Discriminação e incitamento ao ódio e à violência do Código Penal, os atos de Carlos Canha não configuram crime racista, só o seria se levasse a “cabo as condutas referidas em reunião pública, através de escrito destinado a divulgação, ou através de qualquer meio de comunicação social”. É por estas e por outras que, lamentavelmente, as queixas contra a discriminação racial não se traduzem em condenações, em Portugal. No âmbito administrativo, por exemplo, a taxa de arquivamento de queixas apresentadas à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial ronda os 80% e só 7,5% levam a condenação (2006-2016). Para quando uma mudança na lei? E não sendo crime, irá o racismo ser constituído, pelo menos, como agravante, no caso de violência policial sob Cláudia Simões?

2. Magina da Silva, diretor nacional da PSP, perante as imagens da brutal agressão do agente Carlos Canha a Cláudia Simões, apressou-se na altura a responder – e poderia ter optado, até pela precaução que o seu cargo lhe exige, por não dizer nada – que não via ali “qualquer infração” e que se tratava apenas de “um polícia a cumprir as suas obrigações e as normas que estão em vigor na PSP”. Ao fazê-lo não só normalizou a violência sobre corpos negros (fosse uma mulher branca na Av. de Roma, a reação seria a mesma?), como desculpabilizou o racismo na polícia, ao dizer que os agentes “não vêm de Marte”, mas sim “da sociedade portuguesa e refletem todas as virtudes e todos os defeitos da sociedade portuguesa. São cidadãos.” Ora, a polícia (no singular porque é uma instituição) e os cidadãos não têm legalmente as mesmas obrigações de exemplaridade, nem os mesmos poderes. Pode alguém com este entendimento sobre o racismo continuar naquele cargo na instituição que tem o monopólio da violência legítima?

3. Recordemos o post de Facebook do Sindicato Unificado da Polícia de Segurança Pública, então liderado por Peixoto Rodrigues – acusado de vários ilícitos e candidato pela coligação Basta, de André Ventura, às europeias – que insinuava que Cláudia Simões poderia ter transmitido doenças ao agente Carlos Canha e que a mobilização antirracista em torno deste caso era “orquestrada pelo ódio-mor de brancos”. Como ficou o processo aberto pela IGAI a este propósito? Considera ou deixou cair a dimensão racial deste caso?

4. Foi da esquadra do Casal de São Brás, na Amadora, que se chamou os bombeiros alegando-se que os ferimentos de Cláudia Simões se deviam a uma “queda”. Os bombeiros não corroboraram essa versão, registando em certidão tratar-se de uma “vítima de agressão”. Mais tarde, a PSP, num comunicado às redações, apresentaria uma outra versão, que “o polícia, que se encontrava sozinho, para fazer cessar as agressões da cidadã detida, procedeu à algemagem da mesma, utilizando a força estritamente necessária para o efeito” e que, na sequência disso, o agente teve necessidade de ter assistência hospitalar. A acusação contra Cláudia Simões acabou por cair por decisão do Ministério Público, o que é um bom sinal, mas quais as sanções para as falsas declarações?

5. O motorista da Vimeca, que chamou Carlos Canha, ensaiou o mesmo número com uma mulher brasileira e a neta, que tinha idade inferior a 12 anos e por isso não pagava passe. O motorista terá dito, como recorda o sobrinho de Cláudia Simões, Gerson Calveto, “isso é na tua terra, vocês estão aqui a dar cabo do nosso país”, “seus pretos, andam a estragar o nosso país, pensam que isso é só chegar e andar sem passe” e impedindo-as de entrar. Não acontece nada? E a Vimeca, em cujo autocarro este caso começou, porque nunca se posicionou publicamente?

6. Mas algo mais central parece evaporar-se da discussão mainstream em torno deste caso. Em linha com o movimento de “desinvestimento na polícia” (Defunde the Police), a carta aberta, da qual sou signatária, Ir à raiz: mais políticas sociais, menos violência policial apontou, em 2020, que “a relação das forças policiais com comunidades racializadas, imigrantes e pobres é estruturalmente problemática” e que, mais do que investimento na polícia é necessário investimento em políticas sociais. Ao invés de se discutir políticas territorializadas de resposta à crise económica que se abate, ainda com maior gravidade, sobre as comunidades racializadas (o Programa Bairros Saudáveis, está longe de ser suficiente) ou o fim das “Zonas Urbanas Sensíveis” (ZUS) e do artigo 250.º do Código do Processo Penal, que têm legitimado a suspensão de direitos em bairros racializados, vemos que os novos instrumentos de combate ao racismo insistem numa visão interpessoal do racismo nas forças de segurança (por exemplo, no Plano de Prevenção de Manifestações de Discriminação nas Forças e Serviços de Segurança ou no Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação, 2021-2025).

7. Como se não bastasse, assistimos ao ressurgimento – no Relatório Anual de Segurança Interna, 2021 – da narrativa dos gangues juvenis, associando criminalidade grupal às ZUS da AML, juventude, “cultura hiphop” e música “drill”. Com tantas pistas, será preciso dizer com que cor se pinta a criminalidade juvenil? Vêm aí tempos ainda mais duros para as comunidades racializadas e pobres, para os jovens negros, bodes expiatórios para a ausência de políticas de igualdade efetiva e de combate aos verdadeiros gangues, os das offshores, dos vistos gold, do branqueamento de capitais e da corrupção, que muito provavelmente não ouvem hiphop nem drill.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 21 comentários