A grande aguardente do Tejo fez-se com Fernão Pires

Mais uma prova de que os consumidores devem redobrar a atenção à casta Fernão Pires. Dá para tudo, até para a aguardente de luxo e com 20 anos da Casa da Atela.

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A aguardente Capela da Atela XO 20 Anos custa 194 euros. DR

Para vender garrafas, os produtores sabem que uma boa história é meio caminho andado para o sucesso. E também sabem que o truque que funciona bem é a descoberta de umas garrafas velhas ou de uma pipa numa qualquer esquina da adega. Raramente falha. Acontece que, no caso da aguardente vínica Capela da Atela XO 20 Anos, a história não só é real e datada como é bem boa. A história e, claro, a aguardente em si – uma dos melhores destilados que provámos nos últimos tempos.

António Ventura – o enólogo que mais vinho faz neste país – foi contratado em 1998 para a Casa da Atela – em Alpiarça, região do Tejo – por Joaquim de Oliveira, membro da família que criou o grupo agro-alimentar das salsichas Izidoro e com negócios em diferentes áreas. Ora, Joaquim de Oliveira tinha uma tremenda paixão pela cultura francesa, em particular por Champagne, Borgonhas e Cognac (nada parvo). E se em relação aos primeiros vinhos o empresário sabia que não poderiam ser reproduzidos em Alpiarça, já quando à aguardente vínica a coisa poderia ser diferente. E vai daí lançou o desafio ao enólogo.

António Ventura tinha trabalhado com alguns mestres da destilação, recomendou um alambique de coluna e umas barricas para afinação da aguardente. “Só que” – diz-nos o enólogo – “o senhor Joaquim disse logo que não, nada disso”. “Iríamos construir um alambique Charantais e de fogo directo, que é como se faz na região de Cognac. E assim fizemos. Montamos a coisa, que custou uma pipa de massa, e tivemos uma sorte de descobrir um senhor com os 80 anos e que era um verdadeiro mestre na arte da destilação, em particular no que dizia respeito ao controlo da chama de lenha de azinho e oliveira – o facto crítico do processo”.

De maneira que, em 2000 e 2001, fizeram-se as primeiras destilações, a partir de vinhos de uma vinha velha de Fernão Pires, com uma coisa ou outra de Tália ou Boal de Alicante. A aguardente foi depois encaminhada para barricas de carvalho de diferentes proveniências, à espera que o tempo – não havia pressas – tratasse de libertar aqueles aromas misteriosos que os amantes dos destilados conhecem.

Sucedeu que, por doença oncológica, Joaquim de Oliveira faleceu. E, a partir daqui, a casa agrícola com centenas de hectares de terra, entrou em decadência, de tal forma que António Ventura saiu do projecto em 2018. Quando, em 2020, a quinta, em péssimo estado, é comprada pelo grupo Valsabor, Anabela Tereso, que assumiu a administração da propriedade, achou boa ideia contratar de novo António Ventura. Numa qualquer conversa inicial, Anabela vira-se para o enólogo e diz: “parece que temos por aí uma aguardente que dizem ser muito boa”. Com aquele seu ar sempre fleumático, António Ventura, conta a história e diz-lhe que coisa igual não havia na região do Tejo”. Anabela Tereso nada percebia de vinhos e muito menos de aguardentes, mas, mulher de negócios, decidiu iniciar o processo de afinação final para o lançamento digno daquela que é não só a primeira aguardente vínica certificada da região do Tejo como é, de facto, algo de extraordinário em qualquer parte do mundo. Aliás, um americano que por um destes dias foi parar a Alpiarça e entrou na Casa da Atela ficou interessado em diferentes vinhos da casa e mandou embrulhar duas caixas. A dada altura, quem estava a atendê-lo sugeriu, por cortesia, um risquinho da Capela da Atela XO 20 Anos. “O senhor ficou de tal forma excitado que cancelou a encomenda dos vinhos e trocou-a por duas garrafas da aguardente” (cada uma custa 194 euros).

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Anabela Tereso e António Ventura, na apresentação da primeira aguardente vínica certificada do Tejo. DR

E agora que estamos no lançamento do projecto Terroir e com preocupações de realçar as castas que fazem as diferenças nas regiões portuguesas, não deixa de surpreender que se consiga fazer uma aguardente destas com Fernão Pires, que é, erradamente, considerada apenas como uma casta para vinhos brancos de consumo rápido. É o contrário. O Fernão Pires é tão bom e tão maleável que até dá para fazer uma aguardente que, 20 anos depois de ter nascido, mantém ainda o perfume matricial da casta.

António Ventura justifica-nos tudo isso da seguinte forma: “Em primeiro lugar, a destilação pelo método de Charantais é, de longe, muito mais suave (e esta aguardente em concreto foi destilada duas vezes), o que permite manter uma estrutura aromática rica; em segundo lugar, um vinho que vai para destilação não só deve ter terminado a fermentação alcoólica de véspera como deve ter ainda algum açúcar residual, condições que potenciam a tal estrutura aromática”. Estamos sempre a aprender. O que é bom, porque há cada vez mais aguardentes vínicas de luxo em Portugal.

Nome Capela da Atela XO 20 Anos

Produtor Casa da Atela

Castas Fernão Pires

Região Tejo

Grau alcoólico 40

Preço (euros) 184 euros

Pontuação 95

Autor Edgardo Pacheco

Notas de prova A primeira ideia é que estamos perante um perfume – e não uma aguardente – que mistura notas de flores, frutos secos, madeiras exóticas e especiarias. Na boca, o primeiro ataque é suave, sedoso, quase doce, mas que depois cresce para um nível de intensidade que persistir tempo sem fim. Deve ser servida entre 16 e 18º, mas mesmo quando a temperatura sobe não há a mínima agressão do álcool. Até há novas descobertas: laranja confitada aqui ou noz-moscada ali. Impressiona, sim senhor.

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