As escalas médicas de urgência: problemas e soluções

Ao longo dos anos vimos assistindo, com frequência crescente, à falta de médicos nas urgências, em diferentes especialidades. O que pode surpreender é a ausência de medidas que permitam corrigir a tempo estas situações.

A crise dos obstetras verificada em período de férias, induzida por um conjunto de feriados e fins-de-semana interligados, mostrou um conjunto de insuficiências na constituição e na gestão das equipas de urgência dos hospitais do SNS. A falta de médicos não foi um problema de um ou outro hospital ou de uma ou outra especialidade, sendo afinal um problema mais generalizado que percorre todo o tecido hospitalar e condiciona também, a pediatria, a ortopedia, a anestesiologia, etc. Não é por certo uma questão pontual ou inédita, pois ao longo dos anos vimos assistindo, com frequência crescente, à falta de médicos nas urgências. O que pode surpreender é a ausência de medidas que permitam corrigir a tempo estas situações. Por isso impõe-se uma análise mais detalhada sobre estas falhas que nos ajudem a perceber melhor onde estão os problemas:

1. A composição das equipas médicas de urgência é habitualmente preenchida por médicos do quadro do hospital, um número elevado de internos, médicos ao serviço de empresas de trabalho temporário, aposentados, médicos de família e médicos que trabalham noutros hospitais do SNS e que constituem empresas em nome individual para poderem também aumentar os seus rendimentos. Esta mescla de condições de trabalho retira consistência às equipas e coloca médicos seniores do hospital a receber menos por hora extraordinária do que médicos free lancer em regime de prestação de serviços.

Por outro lado, os médicos fora do quadro não têm vínculo hierárquico com a instituição, nem se regem pelas regras de presença e de assiduidade da administração pública. A não comparência de um profissional contratado, não acarreta assim qualquer penalização para o próprio ou para a empresa que representa, o que explica em grande parte o cenário que agora vivemos e que se torna crónico sempre que há períodos típicos de férias.

Sucessivos governos têm lidado com este problema aparentemente sem capacidade de avançar soluções, embora todos reconheçam o anacronismo da situação. A falta de médicos nos quadros dos hospitais e o volume anormal de observações diárias de urgência são a base do problema. Há neste cenário uma subtileza legal que impede uma saída: os médicos do quadro não podem constituir-se em empresas no seu próprio hospital (que lhes permitisse furar o teto do valor da hora extraordinária) como se assumissem duas personalidades jurídicas e, convenhamos, será difícil que alguma autoridade avalize esse cenário.

  • Solução: admitir temporariamente um modelo remuneratório de tempo completo prolongado, por exemplo passando das 40 horas semanais para as 52, com um acréscimo remuneratório significativo que seja aliciante para os médicos do quadro. Suponho que a Ordem dos Médicos (OM) estará de acordo com esta solução.​

2. Os médicos com mais de 55 anos estão isentos do trabalho de urgência e os que têm mais de 50 anos estão isentos do trabalho noturno (das 20h às 8h do dia seguinte). Esta disposição legal existe há mais de 30 anos e é manifestamente incompreensível num cenário sistemático de falta de médicos. A OM e os sindicatos têm-se oposto violentamente a qualquer tentativa de rever esta situação o que, diga-se, só por egoísmo se poderá aceitar: o envelhecimento da classe médica justificaria algum ajustamento, os limites de idade apontados não configuram hoje um médico desgastado e idoso sendo, pelo contrário, um profissional no apogeu das suas qualidades, competências e experiência.

No caso dos obstetras é a própria OM que nos revela que 46% destes profissionais tem mais de 50 anos, não sendo, por isso, aceitável que nada se faça nesta matéria em defesa do interesse público.

  • Solução: o Governo deve negociar com a OM uma subida daqueles limites etários, ainda que de forma transitória e com horários mais curtos (de 8 horas consecutivas, por exemplo) para assim conseguir mobilizar mais médicos do quadro para as urgências.

3. A densidade de especialistas por equipa de urgência é outro problema que afeta sobremaneira a gestão desses serviços. A OM tem o poder de reconhecer em exclusividade a idoneidade dos serviços para efeitos de formação médica, sendo que utiliza um ratio em presença física relacionado com a população teoricamente coberta. Ora, o importante para esse ratio é a afluência diária às urgências e os períodos de maior intensidade da procura. Se esta desce de forma consistente numa especialidade (como é o caso da obstetrícia), os ratios de médicos em presença física devem diminuir proporcionalmente. Nada disso acontece, com a OM muito firme nas suas posições e as administrações dos hospitais a considerarem excessivos os números exigidos. As normas da OM (que, curiosamente, apenas se preocupa com as urgências do SNS) estão descontextualizadas e são incomportáveis, revelando-se muitas vezes como mero desperdício de recursos.

Solução: o Governo deverá abordar a OM no sentido de alterar os seus critérios, adaptando-os melhor à realidade e mantendo, naturalmente, a qualidade intrínseca da formação médica.

4. As escolas médicas têm rejeitado em uníssono a ampliação de vagas para o ingresso de mais estudantes. Com esta medida, contra a qual o Governo parece ser impotente, mesmo numa matéria de transcendente importância para as políticas públicas, tem sido cerceada a possibilidade de termos mais médicos no mercado que consigam dar resposta às solicitações dos setores público e privado. Pois bem, a OM dá total cobertura àquelas decisões e é cúmplice neste processo de estrangulamento na formação de médicos. Todos percebemos as razões e só é pena que o próprio Governo se deixe arrastar neste processo. Felizmente a autorização para o novo curso de medicina da U. Católica traz-nos alguma esperança.

Solução: O Governo deverá intervir diretamente na política de formação de médicos em Portugal, criando condições para que, face ao envelhecimento dos profissionais e às carências manifestas, se crie um novo equilíbrio entre oferta e procura que termine com esta captura inusitada do mercado.

5. As urgências são o maior problema que temos no nosso SNS. A afluência diária de pessoas atinge valores avassaladores para o funcionamento programado dos serviços clínicos e perturba a segurança e a qualidade das prestações. Os gastos com empresas de trabalho médico atingirão este ano valores próximos dos 1500 milhões de euros a que se associam as horas extraordinárias de urgência dos próprios médicos dos quadros. São despesas brutais para pouco resultado, já que os utentes, na sua grande maioria, padecem de afeções simples, tratáveis onde o deviam ser, ou seja, na medicina geral e familiar.

Solução: Estamos perante um problema estrutural que nenhum governo até hoje conseguiu resolver. A medicina geral e familiar não se pratica em Portugal num modelo de proximidade, de acesso e contacto direto entre o utente e o seu médico de família. As USF foram um pequeno avanço, mas a sua burocratização e a visão muito institucionalizada da sua atividade, impedem que sejam de facto o gate keeper do nosso SNS. Estará o governo pronto a encetar esta transformação?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 12 comentários