O silêncio dos culpados

Não há potências benignas e malignas, mas há umas melhores do que outras. As vozes que se levantam contra os erros de um planeta dominado pelos Estados Unidos não terão as mesmas condições numa era dominada por uma autocracia como a China.

A viragem do milénio deixou o mundo extasiado perante os efeitos da globalização económica, nos estilos e bem-estar da idade moderna. Escancararam-se as fronteiras para dar vida ao “laissez faire, laissez passer”, somaram-se as trocas e as missões empresariais aos mercados ditos emergentes. As empresas multinacionais, em asfixia concorrencial, corriam para os novos paraísos laborais cheios de gente desnutrida de condições sociais. As terras que ficavam para além da Taprobana tornaram-se o centro da produção industrial e do crescimento económico mundial.

Para homens como Thomas L. Friedman o planeta estava a ficar plano, achatado pelo efeito da produção estandardizada e dos sacos de dinheiro, o sentido virginal da globalização desenhado por Theodore Levitt (1982). O entusiasmo foi tão grande que levou Jeremy Rifkin a admitir que estávamos a caminhar para o fim do trabalho. Como eram belos os sonhos, acreditava-se na eliminação do esforço para a criação da obra concebida. A verdade é que por tuta-e-meia o cidadão global passou a comprar tudo e mais alguma coisa ao preço da chuva.

A máquina industrial alemã ficou eufórica com a chegada de petróleo e gás a preços de saldo, segundo as orientações do social-democrata Gerhard Schröder ao serviço dos russos. Não era preciso mais nada, a economia rosnava, a política encolhia a cauda, a segurança desvanecia-se. Os dossiers dos direitos humanos são substituídos pela premência das faturas, os discursos melosos são seguidos pelas transferências financeiras. A Europa e os Estados Unidos pensavam que o modelo de segurança do pós-Guerra Fria seria suficiente para acabar com as guerras interestatais. O esplendor do pacifismo kantiano estava ao rubro.

Mas estavam todos enganados. Por detrás do fervor mercantil e dos silêncios interesseiros, renasciam novos despotismos. Entre muitos outros exemplos, a Turquia, a Rússia e a China colocaram no topo do poder homens fortes, determinados a calar todos aqueles que os ousam desafiar. Engrossam-se as vozes, exaltam-se as nações e exibe-se o poder de fogo. As classes médias, destes países aburguesadas, também se acobardam, as bocas fartas perderam a vontade de falar.

Taiwan deixou de contar para o ocidente, tal como Hong Kong ou o Tibete. Pedaços de uma China imperial ávida de terras que só incomoda quando o tabuleiro do poder global se desequilibra. Usando a Lei de Segurança Nacional como pretexto, Pequim abafa as liberdades individuais na antiga colónia inglesa. O mundo ocidental não se motiva com os destinos do “rochedo”, como lhe chamou James Clavell.

A inação repete-se com a anexação da Crimeia pela Rússia, ou as incursões no Mar do Sul da China pela China, expansões territoriais como há muito não se via. A anarquia regressava em força, Pequim e Moscovo podiam ambicionar ter sem dever. A intervenção militar da Rússia na Ucrânia pretendia ser mais um episódio dividido entre a ambição e o silêncio. Ainda que fosse um duro golpe nos artigos basilares da Carta das Nações Unidas, Moscovo aguardava a inércia do costume. As verdadeiras democracias – China e Rússia –, como se definem, estavam prontas para dar uma lição aos Estados Unidos. Com tiques imperais, estes dois gigantes vivem o ressentimento dos resultados da Guerra Fria, procuram retificar os traumas do passado pela exaltação orgulhosa do presente.

O alinhamento estava feito, sem limites. Nos primeiros dias de guerra, Putin surge nos meios de comunicação social chineses como um herói. Pelo contrário, a NATO e os americanos como a fonte de todo o mal. O antiamericanismo estrutural de um segmento intelectual ocidental acha muito bem o atrevimento.

Na realidade, muitas são as contradições da política externa americana ao longo dos anos, não faltam maus exemplos, mas a perspetiva maniqueísta, das lutas de poder globais é um erro. Uns e outros são pautados pela lógica dos interesses, não há potências benignas e malignas, mas há umas melhores do que outras. Uma nova ordem internacional dominada pelos novos despotismos não será melhor do que a ordem internacional estabelecida. De um mundo mau, pode-se estar à procura de um mundo pior, como aconteceu tantas vezes na história. As vozes que se levantam contra os erros de um planeta dominado pelos Estados Unidos não terão as mesmas condições numa era dominada por uma autocracia como a China. Os que procuram uma nova ordem podem estar a cavar uma nova desordem, de aquinhoamento das vontades da sociedade civil.

Lembremos a inconformada esquerda francesa, feminista e anti-americana, que pegou em ombros no ayatollah Khomeini e o levou de Paris para Teerão, em 1979. São os mesmos inconsolados à procura de alimento espiritual na defesa de modelos onde nunca habitaram. Vive-se de exercícios teóricos de física social, doutrinados pelo ressabiamento chomsquiano. Sim, é mau um mundo onde a potência que defende os direitos humanos e, num ambiente de frenesim securitário, criou um campo de detenção em Guantánamo contrariando os direitos internacionais basilares. Mas a mesma potência tem espaço para o contraditório, a imprensa denuncia, a opinião pública agita-se, as instituições condenaram. Num mundo pior, a retificação do mal não existe, é ocultado, justificado como “delírios da imprensa internacional” para denegrir este ou aquele.

Os tempos que correm estão fraturados entre uma parte que tem voz e outra silenciada; uma que pode erguer os punhos e outra onde estes são acorrentados. Esta é uma diferença fundamental, e não podemos ficar em silêncio na defesa dos valores em que acreditamos. Se permitirmos que a escuridão se sobreponha à luz, para além dos governos, também nós seremos todos culpados.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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