O trabalho digno e a história da carochinha

Se fosse melhor para as empresas, para a economia e para os trabalhadores que os vínculos laborais fossem perenes, não haveria precariedade — assumindo como postulado que os agentes económicos não tomam opções irracionais.

Foi aprovada no passado dia 2 em reunião do Conselho de Ministros a Agenda do Trabalho Digno, em moldes que presumo semelhantes, talvez mesmo exactamente idênticos, aos contidos na proposta que foi submetida a consulta pública no final da anterior legislatura.

Não sei o que consta do projecto de diploma, o qual terá ainda de ser debatido na Assembleia da República (AR), mas, admitindo que adopta medidas idênticas às contidas na referida proposta, talvez importasse reflectir um pouco sobre duas delas: a limitação das renovações dos contratos de trabalho temporário e a (contínua) redução dos casos de admissibilidade dos contratos a termo, ambos sob o argumento do necessário combate à precariedade laboral para defesa dos interesses dos trabalhadores.

Assumo que ninguém de boa-fé é, em tese e por princípio, a favor da precariedade. Mesmo os ultraliberais dotados de princípios de civilidade e bom senso não serão a favor da precariedade como conceito isolado. O que poderão defender é a precariedade como resultado, ainda que indesejado, do funcionamento do mercado. Mas, insisto, a precariedade per se não é nenhum bem, não comporta qualquer vantagem, a não ser, eventualmente, uma maior competitividade e um aumento da eficiência, mas também isso é alcançado através de outros meios, como a instituição de verdadeiras políticas salariais e premiais nas empresas.

Partindo dessa premissa, podemos concluir que a precariedade é um mal inevitável numa sociedade em que não existem empregos para todos e em que as empresas não podem dispor de todas as suas vagas laborais para vínculos por tempo indeterminado. E porquê? Porque têm de ter a capacidade para contratar e despedir em função dos sucessivos ciclos económicos. Porque têm de poder adaptar o nível de emprego a projectos concretos. Porque têm de ter a liberdade de falhar previsões em novos negócios. Porque têm de lidar com factores naturalmente instáveis como a sazonalidade. Porque têm de poder substituir trabalhadores temporariamente incapacitados. Etc, etc. Tudo isto faz parte da vida diária das empresas. Não é uma opção. Nenhum empregador de boa-fé e vise o seu bem-estar e o da própria empresa e dos seus trabalhadores defenderá a existência de vínculos precários só porque sim, em detrimento de vínculos estáveis e sem termo.

Faça-se um exercício simples, tendo por postulado que os agentes económicos não são irracionais: se fosse, simultaneamente, melhor para as empresas, para a economia e para os trabalhadores que os vínculos laborais fossem perenes, não haveria precariedade. Certo? Ora, se assim não acontece é porque, por alguma misteriosa razão, a perenidade dos vínculos não serve alguém em algum dado momento. Não serve, desde logo, os empregadores porque eles precisam de ser mais flexíveis na gestão das suas empresas. Não os servindo, também não serve a economia que não existirá sem essas empresas. Finalmente, não servindo nem empregadores nem economia, tão-pouco servirá os trabalhadores que, forçosamente, viverão de e para essa mesma economia, acabando inevitavelmente por ser prejudicados pela adopção de um modelo como o nosso que não é racional.

Porém, se virarmos o tabuleiro do jogo e analisarmos tudo isto sob uma perspectiva meramente ideológica, as coisas mudam logo. Aí podemos deixar a economia real de lado, porque a mesma só atrapalha, passando-nos a concentrar apenas em duas forças naturalmente opostas: empregadores e trabalhadores. Deixa, pois, de existir racionalidade económica e prossecução do melhor possível para o maior número possível e passa a existir apenas análise social baseada na luta de classes. Certamente que, assente nesta ideologia, eu seria o primeiro a defender legislação que protegesse duramente os trabalhadores que estão permanentemente condicionados pelos tempos de trabalho vs. os tempos de não trabalho (que, de resto, são cada vez mais esbatidos fruto das tecnologias de informação). Não hesitaria um só segundo em defender a redução, talvez mesmo eliminação, da precariedade laboral em prol de um castigo para todos os empregadores chamado vinculação por tempo indeterminado. O problema? É que nada disto é assim.

É verdade que existe uma agenda que pretende condicionar a realidade, mas a realidade é a realidade, ponto. Ora, se não é assim, isso significa então que todos os empregadores são boa gente e nunca tentam explorar os trabalhadores pagando-lhes o mínimo possível e obrigando-os a trabalhar no limite ou abaixo da decência? Não, infelizmente. É verdade que o mundo é difícil e muito imperfeito e é absolutamente verdade que há muito, demasiado, trabalho indigno e prestado em condições indecentes. Mas isso não se resolve por decreto, dificultando ou mesmo impossibilitando o recurso à precariedade. A realidade vem prová-lo à saciedade.

Como me recuso a acreditar na má-fé, na falta de perspicácia ou no desconhecimento do legislador, confio que só opções de natureza ideológica fazem com que se legisle no sentido da dificultação do recurso à contratação a termo e ao trabalho temporário. Como, senão em nome de uma ideologia, é possível admitir-se que os trabalhadores podem por decreto ser imunes ao que é melhor ou pior para as empresas das quais acabam inevitavelmente por depender?

Chegamos, assim, à Agenda do Trabalho Digno. Uma agenda que não é apenas programática e que prevê alterações legislativas que coarctam letalmente a gestão das empresas. Uma agenda que sacrifica a realidade à ficção, como se fosse possível impor o bem-estar laboral a uns e sacrificar os interesses de outros.

O lobo mau não é perigoso por querer fazer mal. É perigoso por estar travestido de senhora velhinha muito simpática e inocente. Prefiro ver os dentes brancos e aguçados em vez do lenço a cobrir o focinho. Prefiro um legislador que diga ao que vem e que assuma uma clara opção ideológica. Porém, já agora, que a faça assentar em dados de facto, e não em contos inventados. Porque eu não discuto as percentagens que a ministra do Trabalho apresentou sobre o número de contratos a termo existentes em Portugal por comparação com países congéneres. O que eu discuto é a omissão de dados nessa comparação, tornando-a totalmente inútil. Nesses países é possível despedir como não é por cá, tornando a rotatividade muito maior do que a existente aqui. É essa, aliás, a razão pela qual a contratação a termo se torna desnecessária! Mas isso, para o Governo, é indiferente. Como indiferente é a machadada nas empresas de trabalho temporário, limitando a sua existência e pondo desse modo em risco cerca de cem mil postos de trabalho. Mas isso é outro capítulo desta triste história.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários