Já trabalharam para a indústria dos combustíveis fosséis. Agora, recusam ser cúmplices

Trabalhavam para empresas que servem a indústria dos combustíveis fósseis, muitas vezes ajudando a ofuscar crimes climáticos ou lançar comunicações agressivas de greenwashing. Até que decidiram que não podiam mais ignorar a crise climática e despediram-se.

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Protesto no final de Maio à porta da BlackRock durante a reunião anual de accionistas para pedir que parem de investir em novos projectos de combustíveis fósseis Karla Ann Cote/NurPhoto

Há mais de um século, as empresas de combustíveis fósseis quase não precisavam de ajuda para manter uma boa imagem. Comboios movidos a carvão, centrais de energia a petróleo, casas aquecidas a gás eram um sinal de patriotismo e progresso social. Mas com o passar do tempo, sobretudo depois de os cientistas terem começado a revelar a ligação directa entre o uso de combustíveis fósseis e a crise climática, os gigantes do petróleo dos Estados Unidos voltaram-se para a indústria de relações públicas – que eles próprios ajudaram a criar – para persuadir os consumidores a permanecerem leais.

As campanhas de relações públicas que enquadram o petróleo e o gás como essenciais para resolver a crise climática tornaram-se a estratégia de sobrevivência da indústria. Mas, na última década, os spinmasters [que seleccionam informação para validar um certo ponto de vista] responsáveis por essas campanhas e os executivos das indústrias que sustentam os combustíveis fósseis despertaram para o papel que o seu trabalho desempenha na contribuição para o colapso climático.

Vários funcionários assinaram cartas e pediram demissão em massa em resposta à cumplicidade das suas empresas em ofuscar crimes climáticos e lançar estratégias agressivas de greenwashing. E as demissões estão a aumentar. Numa demissão pública bombástica, Caroline Dennett, consultora da Shell, cortou relações com a empresa, acusando-a de ter uma “conversa dupla sobre o clima”. E pediu que outros fizessem o mesmo.

O jornal The Guardian conversou com três pessoas que revelam [na primeira pessoa] a sua experiência e o momento em que fecharam a porta a projectos ligados aos combustíveis fósseis, partilhando conselhos para outras pessoas que queiram fazer o mesmo.

Tariq Fancy, director de informações para investimentos sustentáveis ​​da BlackRock entre 2018 a 2019

Quando assumi as rédeas da operação de investimento sustentável da BlackRock [sociedade gestora de investimentos global], ainda acreditava no mito de que os males da sociedade poderiam ser resolvidos na intersecção de lucro e missão. Deixei o mundo dos bancos de investimento para iniciar uma organização sem fins lucrativos de tecnologia educacional chamada Rumie. Mas quando fui abordado com uma oferta, não pude recusar a oportunidade de tentar moldar um capitalismo melhor. Depois, tudo aconteceu muito rapidamente.

Vi como a empresa era blindada. Contávamos histórias emocionantes sobre como os investimentos individuais em certos fundos poderiam conduzir a sociedade em direcção a uma economia verde. Mas ao fundo do mesmo corredor, a equipa de políticas públicas provavelmente estava a desacelerar os regulamentos que poderiam lidar com a crise climática.

Incomodou-me uma experiência particular a bordo de um avião particular para Madrid. Ficou claro que os meus superiores não queriam discutir a mecânica do investimento sustentável: se seria possível – e como – o investimento realmente intervir na crise climática. Não consegui dormir naquela noite. Não conseguia livrar-me do sentimento: “O que é que estou aqui a fazer?” E se o investimento sustentável estivesse a fazer mais mal do que bem? Vomitávamos narrativas falsas de que investir no sítio certo era uma graça salvadora, quando na verdade aquilo de que precisávamos era uma mudança no sistema.

Alguns dias depois, anunciei a minha intenção de sair. Fui discreto e fiz a transição ao longo de seis meses. Até me prepararam uma festa de despedida.

Só muito mais tarde, depois de avançar com as minhas próprias investigações, é que tornei pública a minha saída. É definitivamente uma decisão stressante. Mas acho que me sentiria pior se tivesse guardado tudo para mim.

Embora a minha experiência tenha sido sair, na verdade acho que a coisa mais importante que alguém pode fazer neste momento é permanecer no seu lugar e agitar as águas. Quase todos os CEO dizem acreditar nas alterações climáticas. Mas nos bastidores estão a bloquear tudo. Isso não mudará a menos que a pressão aumente a partir de dentro, até que os funcionários mais jovens se juntem para dizer “isto não é aceitável” e destacar o lobby da BlackRock e os gastos políticos ilimitados, que é o que está a bloquear uma legislação climática significativa.

Os executivos sabem que se os funcionários se voltarem contra eles terão que responder, sejam as questões relacionadas com o #MeToo, Black Lives Matter ou cumplicidade na crise climática. Caso contrário, não poderão permanecer à frente das suas empresas. Acho que é aí que os funcionários mais jovens são mais poderosos.

Christine Arena, vice-presidente executiva da Edelman de 2014 a 2015

Quando saí da Edelman [empresa norte-americana de consultoria de relações públicas e marketing] juntamente com cinco colegas, não tinha ideia da escala do problema de “poluição da informação” da indústria de relações públicas. Não há uma base de dados clara para os funcionários verificarem exactamente que clientes são representados pelas suas organizações. Empresas como a Edelman divulgam intensamente os clientes com os quais se sentem bem em trabalhar. Mas os anúncios que fizeram para clientes de combustíveis fósseis não foram muito discutidos.

Por isso, quando o Centro de Investigações Climáticas revelou que Edelman tinha trabalhado para uma das maiores associações comerciais de combustíveis fósseis, o Conselho de Intercâmbio Legislativo Americano, isso provocou uma tempestade nos media e levantou todo o tipo de questões.

De quanto dinheiro estamos a falar? Até quando remontam esses contratos? A Edelman afirmou que não trabalhava para negacionistas climáticos – mas como dizer isso e ao mesmo tempo representar alguns dos grupos mais extremos cujo papel tem sido rebater a mensagem da acção climática?

Apesar de toda a agitação mediática, a administração não quis falar. Ainda não posso partilhar muitos detalhes com receio da reacção negativa que posso ter. O que posso dizer é que já foi mau o suficiente para seis de nós, executivos, sairmos sem necessariamente ter outro emprego.

Saí subtilmente. Na minha entrevista de saída, não lancei nenhum protesto. Pensei: “Preciso de sair daqui e estar sossegada.” Desde então, tenho trabalhado com cientistas, investigadores académicos e jornalistas de investigação e percebi que as relações públicas estão cada vez piores. Nos últimos sete anos, o greenwashing explodiu.

Para os funcionários que estão a pensar tomar uma posição: tomem uma decisão calculada. Isto é sério. Os criativos que podem ter trabalhado em contas para empresas de combustíveis fósseis ou grupos do sector devem contactar directamente um assessor para denunciantes, em vez de passar informações para a imprensa. E quem tem preocupações mais gerais sobre a crise climática pode entrar em contacto com uma rede como a Clean Creatives, escrever cartas para a administração e planear acções. Os funcionários são incrivelmente poderosos. Acho que eles serão o ponto de viragem neste problema.

Embora seja essencial ser estratégico, peço a outros com integridade que ajam rapidamente. A “poluição de relações públicas” pelas companhias de petróleo e gás só piorou desde a invasão da Ucrânia pela Rússia. Este é o momento de encontrar coragem e voz.

Lembre-se, há muitas oportunidades de trabalho fora das maiores empresas. Estou melhor do que nunca desde que saí da Edelman e ainda trabalho com clientes a nível internacional. A inovação neste sector já não está nas mãos das grandes empresas de relações públicas da velha guarda. Está nas startups e nas pequenas e médias agências. Há outras oportunidades.

Zac Schwarz, criativo freelancer

A maioria dos meus clientes são agências que me procuram para trabalhar em campanhas com cunho ético ou “verde”. No início deste ano, fui abordado por duas agências diferentes. Mas depois de visitar os seus sites, percebi que eles também trabalhavam com clientes de empresas de combustíveis fósseis.

Não me sinto confortável em nomear as empresas ou os seus clientes. Lamento não poder ser mais específico. É muito difícil, porque aquilo de que estamos a falar é bem mais importante do que se eu deixo o nome de alguém aqui ou não. Mas também corro o risco de perder meu rendimento.

Quando tive de comunicar a uma empresa que estava desconfortável em aceitar o trabalho, fiquei muito nervoso. Foi muito tenso. Acho que de alguma forma esperava que eles abrissem o coração ou algo do género, mas não. A reacção foi: “É justo.”

Fiquei realmente desapontado com o quão pouco ambas as agências queriam falar sobre o assunto. Isso significa que no topo das empresas ninguém quer saber da crise climática.

Se uma agência quisesse envolver-se num debate para falar sobre onde é que eles estão no seu caminho para cortar relações com clientes ligados aos combustíveis fósseis, eu poderia entender isso e até trabalhar com eles. Mas a questão é: “Se trabalhas com combustíveis fósseis e não estás a cortar com esses clientes, então és cúmplice do dano que eles estão a causar.” Essa tem que ser a linha vermelha. Eu não disse isso na altura. Mas agora estou entusiasmado com essa ideia.

O meu conselho para outros freelancers é que façam o seu trabalho de casa com bastante antecedência, para tentar perceber se uma agência que os aborde tem ou não clientes na indústria dos combustíveis fósseis. Se o fizerem, preparem bem o discurso. Será melhor do que perceber mais tarde e ter de comunicar isso numa fase mais avançada da relação laboral.

E não se preocupem se vos chamarem hipócritas quando começarem a recusar clientes. Enerva-me quando as pessoas acusam a minha mulher de andar de avião, apesar da minha postura em relação à crise climática, por exemplo. Não podemos ficar presos a isso. Somos todos hipócritas. É melhor ser hipócrita e fazer alguma coisa do que ser hipócrita e não fazer nada.

Este artigo original do jornal The Guardian é publicado no âmbito do consórcio internacional de jornalismo Covering Climate Now, uma colaboração global de mais de 450 organizações de media para fortalecer e dar profundidade à cobertura da crise climática.

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