Até quando? É o que pergunta qualquer pessoa que vá seguindo o que se passa nos Estados Unidos, ano após ano. E, na verdade, também é o que pergunta grande parte dos norte-americanos. Ou mesmo a maioria. Já lá vamos.

Até quando… o quê?

As centenas de tiroteios em massa, incluindo em escolas, acontecem todos os anos nos Estados Unidos. Foram 692 ocorrências no ano de 2021 e, desde o início de 2022, já vamos em 229. As contas são do Gun Violence Archive, que define “tiroteio em massa” como um ataque a tiro onde pelo menos quatro pessoas foram baleadas. E, na semana passada, o mundo voltou a receber horrorizado a notícia de mais um massacre escolar: na pequena cidade de Uvalde, estado norte-americano do Texas, onde 19 crianças (todas com menos de dez anos) e duas professoras foram mortas a tiro por um homem de 18 anos, que depois foi morto pela polícia.

Porque é que acontecem tantos tiroteios em massa nos Estados Unidos?

Uma parte da classe política norte-americana, sobretudo o Partido Republicano, aponta o dedo a uma longa lista de suspeitos: os videojogos, a música rap, os problemas de saúde mental, a crise da família tradicional, a perda de influência da religião no dia-a-dia… No entanto, todas estas tendências podem ser encontradas em praticamente todos os países, e só num é que se repetem os massacres a tiro

O que distingue então os Estados Unidos do resto do mundo? Porque é que não existem tiroteios em massa com tanta frequência noutros países?

À excepção óbvia de países em guerra (como o Iémen), de países onde existem grupos criminosos muito violentos (como o México), ou de casos raros de massacres como o de Utoya, na Noruega, ou de Christchurch, na Nova Zelândia, não é comum vermos o que na América se tornou frequente: um homem (é quase sempre um homem) entrar armado numa escola, supermercado, discoteca ou igreja e matar o maior número possível de pessoas desarmadas. E a grande diferença está no fácil acesso às armas nos Estados Unidos, onde é possível comprar armamento num supermercado ou através da Internet, sem uma licença de porte de arma e sem mostrar, por exemplo, o registo criminal. Não apenas uma pistola ou uma arma de caça, mas também armas semi-automáticas como a infame AR-15, utilizada em alguns dos piores massacres, e que permite fazer dezenas de disparos por minuto.

Quantas armas tem o americano comum?

Os Estados Unidos são o país com maior posse de arma em todo o mundo: por cada 100 habitantes, há 120,5 armas de fogo, segundo dados de 2018 do projecto suíço Small Arms Survey. Ou seja, há mais armas do que americanos. Isto não significa que todos os americanos têm armas, mas uma parte da população está fortemente armada há quem tenha autênticos arsenais de guerra em casa. Para se ter uma noção de quão elevado é este número, o segundo país com maior posse de arma é o Iémen, que está em guerra há vários anos, e onde o mesmo projecto regista 52,8 armas por habitante – menos de metade do valor dos EUA.

Os americanos são loucos por armas?

Não necessariamente. Não a maioria, pelo menos: 52% dos norte-americanos (ou seja, a maioria) defendiam em 2020, numa sondagem da Gallup, que devia haver mais restrições à venda de armas no seu país. Só 35% defendiam que as leis devem continuar iguais, e só 11% queriam leis ainda menos restritivas. 

Então porque não se fazem novas leis para restringir a venda de armas nos EUA?

Aqui é que é que o caso fica complicado e, ao mesmo tempo, começamos a perceber o que está em causa. Se fizermos a mesma pergunta da sondagem da Gallup a apoiantes dos dois grandes partidos norte-americanos, o Republicano (mais à direita) e o Democrata (mais à esquerda), as respostas vão ser radicalmente diferentes: 91% dos democratas querem mais restrições à venda de armas, mas apenas 24% dos republicanos querem mexer na lei no mesmo sentido. Sem surpresa, o Partido Republicano tem sido contrário a que se mexa na lei, quer em cada estado norte-americano (e os republicanos governam 28), quer a nível nacional (onde estão actualmente em minoria no Senado, mas onde conseguem bloquear votações devido a uma regra muito peculiar conhecida por filibuster, que permite a qualquer senador do partido em minoria congelar os debates).

A repetição de massacres em escolas não pode levar os republicanos a mudarem de opinião?

A incentivar os republicanos a não mudarem de posição está, para além da opinião do seu eleitorado, o poderoso lóbi das armas, sobretudo da NRA, a National Rifle Association. Esta associação é uma das maiores financiadoras de campanhas eleitorais nos Estados Unidos, e a maioria dos candidatos e pré-candidatos republicanos procuram os donativos da NRA, comprometendo-se em troca a não aprovar restrições à venda de armas. Se fosse preciso uma demonstração mais explícita do poder deste lóbi, basta ver quem apareceu na convenção que a NRA organizou no Texas apenas dias após o massacre de Uvalde: o ex-Presidente Donald Trump e o senador do Texas Ted Cruz.

Para além do muito dinheiro que está em jogo, há também outros factores que mantêm bloqueado o debate das armas nos EUA. Os republicanos e o seu eleitorado têm uma visão política, cultural e quase filosófica da posse de armas: defendem que a possibilidade de ter armas em casa é não apenas uma expressão da sua liberdade individual, como é também o que impede que uma ditadura se instale no país. E apontam para a Constituição dos Estados Unidos, e em particular para a famosa segunda emenda do documento, escrita em 1791, que interpretam no sentido de permitir a posse armas por civis (esta interpretação não é consensual, mas vai fazendo lei). 

Por outro lado, a cada vez maior polarização que existe entre republicanos e democratas nos Estados Unidos faz com que cada polémica, incluindo a do acesso às armas, seja vista de ambos os lados como um assunto em que não pode haver acordo, cedências ou um meio-termo. É o que se passa com outros debates importantes nos EUA, como o do aborto ou dos direitos de minorias sexuais.

Mas os democratas querem proibir as armas?

Não defendem uma proibição total. O que tem sido defendido e levado a votos são propostas, por exemplo, para que a venda de armas fique dependente da verificação dos antecedentes dos compradores. Nesse modelo, alguém que tenha cometido um crime fica impedido de comprar uma arma. Discute-se também a criação de listas de pessoas que não devem comprar armas e a quem as autoridades podem retirá-las: pessoas com problemas mentais ou com um passado de ameaças e comportamentos suspeitos. Há ainda propostas para a completa proibição da venda de armas de elevada capacidade, como a AR-15, usada em Uvalde, que é o que já acontece, com mais ou menos excepções, em estados como a Califórnia e Nova Iorque. 

Há alguma hipótese de uma mudança profunda nos próximos tempos?

É pouco provável. Uma primeira proposta de controlo de armas após o massacre de Uvalde foi bloqueada na semana passada no Senado. Há negociações entre democratas e alguns republicanos (há alguns favoráveis a mudanças na lei, tal como há alguns democratas menos favoráveis) para uma nova proposta esta semana, mas o clima político não é favorável: estamos em ano de eleições intercalares e a dois anos das eleições presidenciais, e é não é provável que os republicanos contrariem o que boa parte do seu eleitorado defende, nem o que os seus financiadores lhes pedem. Vários estados podem legislar de forma diferente e contestar nos tribunais o que vier do Senado, e o Presidente dos EUA não tem poder legal para simplesmente decretar uma lei nacional sobre esta matéria. Como vários comentadores, políticos e jornalistas vêm dizendo ao longo dos últimos anos, se nada mudou com a tragédia de Sandy Hook, em 2012, quando 20 crianças de seis e sete anos foram mortas a tiro, parece impossível que algo leve os opositores do controlo de armas a mudar de ideias o preço do acesso às armas, pago com vidas de crianças, passou simplesmente a ser considerado aceitável por uma influente minoria nos EUA.

Voltamos na próxima segunda-feira para explicar e descomplicar outros assuntos que são notícia. Até lá!