“O espaço da família é o último reduto onde é tolerado bater numa criança”

A propósito do Dia Mundial da Criança, que se celebra nesta quarta-feira, 1 de Junho, o Instituto de Apoio à Criança quer relançar a discussão sobre os castigos corporais, punidos pelo Código Penal desde 2007. O tema, contudo, continua a não reunir consenso na sociedade civil e na jurisprudência.

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Um estudo de 2019 diz que 75% dos menores com sete anos são vítimas de agressão psicológica e de castigos corporais Unsplash/Caleb Woods

A criança fez uma birra no supermercado e o pai deu-lhe uma palmada — é uma forma de educação ou violência? Punidos pela lei portuguesa há 15 anos, os castigos corporais continuam a ser culturalmente desculpados sob o mote “da palmada educativa”. Agora, o Instituto de Apoio à Criança (IAC) quer clarificar as responsabilidades parentais no Código Civil. Mais do que alterar a lei, sublinham a importância de consciencializar para o tema. “A ideia não é apontar o dedo. Queremos que o mundo seja melhor para as crianças e isso tem de ser uma urgência”, lembra Nuno Domingues, coordenador da campanha “Nem mais uma palmada”.

O tema da “palmada educativa” não é consensual não só na sociedade civil, como também na jurisprudência. Enquanto um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2019, destaca que “urge pôr o acento tónico no poder correctivo da persuasão e na desnecessidade de causar dor física para corrigir”, correndo o risco “de essa passar a ser a forma mais habitual de relacionamento com a criança”, também há magistrados com uma opinião diferente. É o caso de um polémico acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2015, que Nuno Domingues evoca e em que se pode ler: “Só quem não teve filhos ou nunca cuidou de crianças e lhes deu carinho e amor é que pode associar uma bofetada ou um puxão de orelhas, ocasional e motivado por grave comportamento das mesmas, a uma conduta de cariz criminal, ultrapassando os limites do poder-dever educacional do adulto responsável.”

O juiz António José Fialho, magistrado no Tribunal de Família e Menores do Barreiro de 2014 a 2021, reconhece que esta é uma área cinzenta da jurisprudência, dependente de um enquadramento mais amplo. “Há uma componente que depende da experiência pessoal dos magistrados e de como se posicionam em relação ao poder de correcção”, analisa. O especialista recorda uma situação em que um pai deu uma estalada à filha depois de descobrir que esta furtava dinheiro à avó. “Era um pai com um comportamento exemplar do ponto de vista da educação, mas naquele dia houve um exagero da parte dele”, observa.

Apesar de múltiplos acórdãos referirem o poder-dever de correcção como parte das responsabilidades parentais, a reforma de 1977 do Código Civil eliminou o “poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas”. Desde 2007, o castigo físico das crianças também é punido pelo Código Penal, seja pelo crime de violência doméstica ou de maus tratos (art.º 152) ou de ofensa à integridade física (art.º 143).

A nível europeu, a pressão para a abolição dos castigos corporais já vem sendo feita há décadas e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, o principal instrumento jurídico desta temática, proíbe todas as formas destas punições nos artigos 19.º e 37.º. Em todo o mundo, 63 Estados já proibiram estes castigos — em 2021, juntaram-se à lista a Coreia do Sul e a Colômbia.

Lado a lado com Portugal, também Espanha, Nova Zelândia, Países Baixos, Togo, Uruguai e Venezuela proibiram esta forma de violência em 2007. Já nos Estados Unidos, por exemplo, ainda é permitido este tipo de castigos em casa e, em 19 estados, não foram banidos nas escolas. O direito de os pais infligirem punições nos filhos não se enquadra legalmente em violência e maus tratos neste país, segundo a plataforma internacional dedicada ao tema End Corporal Punishment (Pelo fim dos castigos corporais, em tradução livre).

Importa clarificar, contudo, o que se entende por castigos corporais. De acordo com o Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, no Comentário Geral n.º 8 de 2006, estes englobam “qualquer castigo corporal ou físico” em que a força física é usada com a intenção de causar algum grau de dor ou desconforto ainda que de “forma ligeira”. A psicóloga clínica e terapeuta familiar Joana Garcia da Fonseca exemplifica: “Uma palmada, uma bofetada com a mão ou um objecto, pontapear, abanar ou projectar uma criança, arranhar, beliscar, morder, puxar cabelos, puxar as orelhas ou forçar a ingestão de algum alimento desagradável.”

A ex-presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) da Amadora não tem dúvidas de que estes “são exemplos claros de violação dos direitos da criança e representam abusos de poder”. Como tal, sublinha, devem “constituir crime”. O Instituto de Apoio à Criança é da mesma opinião: “O espaço da família é o último reduto onde é tolerado bater numa criança.”

A criança como um “sujeito de direitos"

Além de propor uma alteração ao artigo 1878.º do Código Civil, relativo às responsabilidades parentais, o IAC quer promover um estudo para avaliar a percepção actual sobre o tema dos castigos corporais — com os primeiros resultados a serem apresentados no fim do ano. Os últimos dados relativos a Portugal, de 2019, numa investigação do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), coordenada por Henrique Barros, davam conta de que 75% dos menores com sete anos são vítimas de agressão psicológica e de castigos corporais, nomeadamente uma bofetada ou uma palmada no rabo.

Desde a criminalização dos castigos corporais, não é fácil quantificar o número de casos que chegaram a tribunal. A razão prende-se com o facto de, como explicou Catarina Madeira, do Gabinete de Comunicação da ministra da Justiça, não serem recolhidos dados “com um grau de detalhe que permitam especificar se os crimes em causa têm como origem castigos físicos, nomeadamente palmadas”, ou maus tratos psíquicos. O que se sabe é que, entre 2007 e 2020, houve 791 processos-crime por violência doméstica contra menor e 3388 por maus tratos a menor ou pessoa indefesa em fase de julgamento findos nos tribunais judiciais de 1.ª instância.

Sobre a chegada destes processos-crime a tribunal, António José Fialho lembra que os castigos corporais costumam ser assunto sobretudo em circunstâncias de conflito parental ou quando se trata de responsabilidades parentais delegadas a terceiros. Normalmente, os casos de castigos corporais em que existe “uma resposta punitiva” são situações com abusos mais severos, enquadrados no crime de maus tratos ou violência doméstica. Ainda assim, alerta Nuno Domingues, “o número de queixas não acompanhará o número real desta prática”.

António José Fialho não pertence ao grupo de magistrados que possa ter dúvidas quanto ao enquadramento deste tipo de castigos no dever de correcção. “A partir do momento em que reconhecemos a criança como um sujeito de direitos, o sujeito de direitos não deve ser educado dessa forma”, declara. “É simples: a violência tem de ser eliminada das relações seja criança seja adulto”, concorda o advogado do IAC.

E a culpabilidade dos castigos corporais, sublinha Nuno Domingues, está apenas nos adultos: “Quando acontecem é sempre porque o adulto está desequilibrado. Quantas vezes nós, adultos, não temos vontade de bater noutro adulto, mas não o fazemos. E nas crianças permitimos.” A psicóloga Joana Garcia da Fonseca recorda a frase de Nelson Mandela que considerava não haver “melhor retrato da alma de uma sociedade do que a forma como se tratam as crianças”.

Um modelo de violência para o futuro

Para Joana Garcia da Fonseca, este perpetuar da “naturalização” dos castigos no seio da família “banaliza a violência” e mostra às crianças que “esta é a forma aceitável de resolver conflitos ou problemas”, não só na família, como também na relação “com os pares”. Nuno Domingues acredita que os números de violência no namoro e de violência doméstica se explicarão, em parte, por esse motivo. “As crianças observam e imitam”, salienta, por sua vez, a pedopsiquiatra Margarida Crujo, autora de O Meu Filho não Precisa de Rótulos.

Estes pais, os que acreditam que “só se perdem as que caem ao chão”, vêm eles próprios de famílias violentas, crê Joana Garcia da Fonseca. “Quando trabalhava na CPCJ, dedicava sempre uma sessão aos pais para saber como tinha sido a sua infância e a relação com os pais. Irremediavelmente, a história de abuso parental vinha lá de trás; eles próprios, frequentemente, tinham sido alvo de castigos corporais, de humilhações e abusos pelos seus pais”, conta.

A humilhação de que fala a ex-presidente da CPCJ da Amadora é apenas um dos muitos efeitos que os castigos corporais têm nos mais pequenos. “A primeira vez em que apanha, a criança fica surpresa. Depois disso, pode ficar muito insegura, com medos e a antecipar uma nova palmada”, descreve a pedopsiquiatra Margarida Crujo, salientado que este é um trauma que pode deixar marcas na personalidade, já que “uma palmada nunca vem só”. Joana Garcia da Fonseca lembra que este “stress tóxico” é induzido pela hormona do cortisol, e pode mesmo afectar a “maturação do sistema nervoso central” de uma criança que vive num ambiente que não é protector, afectando a regulação das emoções.

Interromper o ciclo

A solução, acreditam os especialistas, mais do que uma criminalização mais severa, passa por um quebrar do ciclo de tradição familiar, a começar na educação. “Temos uma das melhores leis de violência doméstica do mundo. Isso acabou com a violência doméstica em Portugal?”, questiona o juiz António José Fialho. Nesse sentido, o IAC preparou um módulo em parentalidade consciente, disponível para pais e outros cuidadores/educadores, a propor alternativas ao uso dos castigos corporais. Esse trabalho, acredita Joana Garcia da Fonseca, também deverá passar pelas escolas, “com enfoque em estratégias positivas para a resolução de conflitos”.

Aos pais, Margarida Crujo aconselha o autoconhecimento. “Têm de saber se, estando expostos a situações-limite, conseguem aguentar ou se são mais impulsivos.” Se a situação escalar, a pedopsiquiatra sugere que seja outro membro do casal a tomar a liderança, deixando que o interveniente principal da discussão se afaste. Depois de serenado o conflito, “tente falar com a criança sobre o assunto” e, eventualmente, “antecipar uma situação futura”, “perceber como é que os filhos gostavam que os pais agissem”.

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