Iuventa e o dever de resistir

Estou sentado na borda do passeio à porta do tribunal de Trapani, em Itália, no primeiro dia do julgamento da tripulação, da qual eu próprio fiz parte, de um navio que salvou milhares de vidas no Mediterrâneo. As circunstâncias atuais obrigam-nos a formular uma pergunta fundamental: quais os deveres da sociedade civil num mundo injusto?

Numa noite fria de Março de 2017, nove mulheres e seis homens abriram um buraco na vedação do aeroporto de Stansted e entraram na pista de descolagem. Tomaram posições pré-definidas em torno do trem de aterragem de um Boeing 767 e enfiaram os braços dois a dois dentro de tubos cujos espaços vazios encheram com espuma expansiva. Eram agora uma corrente humana que circundava a roda, impedindo o avião de descolar. Quando chegou a segurança do aeroporto e, mais tarde, a polícia, lia-se numa faixa em letras garrafais “MASS DEPORTATION KILLS" ("deportações em massa matam”, em português).

Dentro do avião iam 60 pessoas que o Home Office do Reino Unido tinha decidido deportar para o Gana, a Nigéria e a Serra Leoa num avião alugado à Titan Airlines com esse propósito. Enquanto eram arrastados para o interior de vários carros de polícia, os 15 protestantes exultavam de alegria ao perceberem que o voo tinha sido cancelado.

Estou neste momento sentado na borda do passeio à porta do tribunal de Trapani, em Itália. Estou desconfortável. Não pensava nesta história há muito tempo e não entendo ainda porque é que ela tomou de assalto os meus pensamentos.

Este é o primeiro dia do julgamento da tripulação do Iuventa, um antigo navio de pesca holandês que foi comprado por um grupo de jovens em 2016, reparado e levado para o Mediterrâneo central para salvar vidas humanas. No seu primeiro ano no mar, a tripulação, da qual eu próprio fiz parte, participou no resgate de mais de 14 mil pessoas em situação de emergência naquela que se tornou a fronteira mais mortífera do mundo. Em Agosto de 2017, sem qualquer sobreaviso, fomos obrigados a aportar em Lampedusa, o Iuventa foi confiscado e fomos notificados de que estávamos sob investigação criminal. Eu e nove colegas meus fomos constituídos arguidos por suspeita de auxílio à imigração ilegal e só em 2021, decorridos quatro anos, o procurador decidiu acusar formalmente apenas quatro dos dez. Eu vi-me livre de uma acusação que, segundo a lei italiana, poderia ter-me conduzido a 20 anos de prisão, mas esse não foi o caso para todos nós.

Sascha, Dariush, Kathrin e Uli. Pessoas que vi com os meus próprios olhos fazerem mais pela humanidade do que quaisquer outras com quem alguma vez me tenha cruzado, encontram-se agora ali à frente no banco dos réus, exatamente por essa razão.

Por decisão do procurador, que resolveu ignorar as reivindicações de transparência por parte da Amnistia Internacional, o julgamento decorre à porta fechada. Coletivos locais solidários com a nossa causa organizaram uma manifestação à porta do tribunal e têm estado a ser proferidos discursos apaixonados e palavras de ordem. Está demasiado calor para conseguir seguir tudo o que é dito e a minha cabeça perde-se nos anos todos em que, juntos e impedidos de voltar ao mar, concebemos campanhas de comunicação e angariação de fundos para financiar as custas legais deste processo. Penso nos milhares de pessoas que se indignaram e nos apoiaram como se fosse a sua própria liberdade que estivesse em causa. E talvez fosse precisamente esse o caso. Ao longo desses tempos conturbados, estas pessoas viram nos nossos direitos os seus e na luta pela nossa liberdade a luta pela solidariedade e pelo direito de sermos salvos, que todos devíamos ter independentemente do lugar de onde vimos. Fomos chamados a dar centenas de entrevistas e participámos em centenas de eventos e manifestações.

Durante anos argumentámos que as nossas operações de resgate não só eram legais como eram obrigatórias segundo a lei internacional. Na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar lê-se que se “deverá exigir do capitão de um navio [...] que preste assistência a qualquer pessoa encontrada no mar em perigo de desaparecer”. Tudo isto é verdade, mas nós não nos atirámos ao mar em pequenos navios porque era legal fazê-lo. Fizemo-lo porque era moralmente correto. Não é a legalidade das nossas ações que lhes confere idoneidade, porque a lei não é um garante da moralidade. A lei não deve interferir no debate entre o certo e o errado. A discussão é moral, e é depois de decidirmos sobre a moralidade que há que legislar em conformidade.

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O Mediterrâneo transformou-se na última década na rota mais mortífera do mundo REUTERS/Stefano Rellandini

Com demasiada frequência, ouvem-se argumentos contra o acolhimento de pessoas migrantes que se baseiam na afirmação de que são “imigrantes ilegais”, como se essa característica fosse mais que suficiente para deliberar sobre o mérito da sua causa. Ora, se o problema fosse a ilegalidade, todos estaríamos dispostos a alterar a lei para que se resolvesse a questão. Claramente não estamos, por isso não pode ser esse o problema. A discussão é moral.

É por sabermos isto que, embora o nosso trabalho tenha uma natureza prática bastante diferente, nós, tripulantes de navios de resgate civil, temos muito mais em comum com os ativistas de Stansted que impediram aquela deportação em 2017 do que com as marinhas europeias ou a Frontex que conduzem resgates em algumas partes do mar Mediterrâneo. Devo dizer que me permito a ousadia de estabelecer este paralelismo, não porque esteja seguro de que, chegada a oportunidade, faria justiça à audácia que demonstraram aquelas pessoas no aeroporto, mas por oposição à motivação das autoridades no seu esporádico trabalho de socorro no mar. Aquilo que guia a sociedade civil quando se organiza para se substituir aos Estados e garantir aos migrantes os seus direitos é uma reflexão profunda sobre o mundo atual e o mundo que queremos construir. Não é a legalidade.

Os Stansted15, nome por que ficaram conhecidos os 15 activistas, foram acusados formalmente e condenados por uma lei formulada para combater o terrorismo. Só dois anos depois, e tendo recorrido da decisão, chegou o veredito que os ilibou de todas as acusações.

Por vezes a lei é moral, mas por vezes não o é. E a política de fronteiras da União Europeia (UE) é um caso que o ilustra particularmente bem. O Home Office do Reino Unido assinou recentemente um acordo que permitirá enviar os requerentes de asilo para o Ruanda pela força, em troca de ajuda ao desenvolvimento. Os campos de refugiados na Grécia, locais onde muito literalmente crianças passam fome, não só são legais como são financiados e mantidos pela UE. Os acordos entre a UE e as milícias líbias, que garantem armamento moderno a estas últimas, bem como treinos e financiamento milionário, com a contrapartida do “controlo de fronteiras”, resultaram já na interseção em alto mar e retorno de dezenas de milhares de pessoas fugidas da guerra a autênticos campos de concentração onde são torturadas, violadas e vendidas como escravas. E tudo indica que as autoridades europeias consideraram esta política um sucesso, pois o Parlamento italiano triplicou no ano passado o orçamento para apoio às milícias líbias, elas próprias envolvidas no tráfico de pessoas. Tudo isto num mar que já viu pelo menos 20 mil mortes evitáveis nos últimos oito anos. Por vezes, a lei é imoral.

Assim, as circunstâncias atuais obrigam-nos a formular uma pergunta fundamental: quais os deveres da sociedade civil num mundo injusto? Face à imposição de leis injustas e à relutância em alterá-las, face às constantes violações de direitos humanos, face à tão desnecessária perda de vidas inocentes, não será a resistência um imperativo moral? Se amanhã o resgate marítimo for ilegalizado, não se torna este tanto ou até mais necessário do que é hoje?

Nos anos 80, perante a chegada a Los Angeles de milhares de requerentes de asilo fugidos de guerras civis patrocinadas pelos EUA na América Central, foram passadas leis que criminalizavam a ajuda a estas pessoas. Luís Olivares, um padre católico, começou a abrigar migrantes indocumentados na sua igreja para os proteger da força impiedosa do Estado que prendia e deportava. Muitas outras paróquias seguiram o exemplo, dando origem ao chamado movimento de santuário. Sobre isto, Olivares escreveu o seguinte:

“As ordens do Senhor são claras. Deus disse ‘quando estrangeiros viverem contigo na tua terra, tratá-los-ás do mesmo modo que aos nativos’. À luz do chamamento do Evangelho pela justiça, vemo-nos agora incapazes de cumprir os regulamentos sobre a contratação de trabalhadores sem documentos. Hoje estamos com estas pessoas. Comprometemo-nos a contratar trabalhadores independentemente do seu estatuto legal, a encorajar empregadores a contratar os indocumentados, a alimentar, vestir e acolher aqueles que são rejeitados pela lei, a apelar a outras congregações e líderes da Igreja para que respondam de maneira semelhante. Desafiamos o povo americano a reconhecer que a própria lei viola os direitos humanos e encorajamo-los a dar resposta às necessidades dos indocumentados com justiça e compaixão.”

O padre Luís Olivares, cujo movimento incluía mais de 500 congregações cristãs e judaicas, foi preso numa manifestação pelos direitos dos migrantes e recebeu inúmeras ameaças de morte. Resistir era necessário.

Assim como o movimento de santuário, os Stansted15 conseguiram coisas extraordinárias. Das 60 pessoas que iam naquele avião da Titan Airlines, 11 estão hoje a viver no Reino Unido, duas das quais foram identificadas como vítimas de tráfico humano e foi-lhes concedido estatuto de refugiado. Além disso, esta história deu início a uma discussão acesa naquele país acerca destes voos em que são deportadas perto de duas mil pessoas por ano, frequentemente de pernas e braços acorrentados. Os Stansted15 conheciam os riscos, mas resistir era necessário.

Há uma linha que liga os activistas do aeroporto, as igrejas de Los Angeles, as organizações não governamentais e grupos informais que prestam apoio às populações aprisionadas nos campos gregos, a tripulação do Iuventa e dos outros navios de resgate civil e todos os outros movimentos de solidariedade para com pessoas migrantes. Todos, sem exceção, reconheceram as possíveis represálias judiciais do trabalho que fazem, e todos, sem exceção, aceitaram calmamente que a necessidade que temos de solidariedade é maior do que a gravidade das suas consequências.

E, embora essas consequências possam ser verdadeiramente sérias, não há como negar que o serão muito mais para as principais vítimas da injustiça, os estrangeiros, os indocumentados, os deportáveis. Resistência deliberada é um método legítimo de luta por um mundo melhor para todos, mas é incomparavelmente menos arriscada para os cidadãos que veem os seus direitos garantidos à partida do que para as pessoas migrantes. Não será então uma responsabilidade particularmente nossa, enquanto sociedade civil, a de contestar leis injustas por aqueles que não o podem fazer?

Levanto-me quando vejo os quatro acusados descer as escadas do tribunal e aproximo-me. São recebidos por jornalistas que os fotografam e lhes fazem perguntas no meio do rumor das palmas serenas dos apoiantes. Segundo as previsões dos advogados, juntamente com membros dos Médicos Sem Fronteiras e Save The Children também acusados, vão ter de enfrentar vários anos de um julgamento lento e injusto, perseguidos pelo espetro da pena na prisão por terem ajudado a salvar milhares de vidas.

Estou dividido entre o alívio que sinto por já não ser eu a estar daquele lado e a raiva causada pela injustiça de tudo isto. Espero só conseguir fazer uso de ambos para ter a audácia de continuar a resistir.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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