O meu namorado dos seis anos

Que tenha havido leis que discriminavam abertamente até há tão pouco tempo significa que a igualdade vem mesmo longe se não a puxarmos já para mais perto.

Foi há 40 anos, em 1982, que o Código Penal deixou oficialmente de criminalizar-me e às pessoas que, como eu, se sentem atraídas por pessoas do mesmo sexo e fazem alguma coisa em relação a essa atração. Em bom rigor, o crime era o sexo – num eco daquela outra classificação de erros que já não envolve (e nunca devia ter envolvido) o Estado: “amar o pecador, mas não o pecado.”

No entanto, embora o crime tenha teoricamente acabado em 1982, o castigo continuou na lei. O próprio Código Penal (em 1982) substituiu o artigo que me criminalizava por um artigo que criminalizava uma coisa chamada inicialmente “atos homossexuais com menores” e depois “atos homossexuais com adolescentes": isto era apenas uma forma de estabelecer uma idade do consentimento diferente para relações sexuais se se tratasse de pessoas do mesmo sexo. Os “atos sexuais com adolescentes” (que, pelos vistos, seriam heterossexuais) eram proibidos num artigo diferente, com uma idade do consentimento diferente. Essa discriminação – punitiva e insidiosa – só acabou em 2007.

E o Código Civil também nos punia: que uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo (que envolvia, portanto, o antigo crime) no fundo tinha que continuar a ser penalizada na sua dignidade. Não houve reconhecimento jurídico das uniões de facto de casais do mesmo sexo até 2001 (quase 20 anos depois) e não houve acesso ao casamento para casais do mesmo sexo até 2010 (quase 30 anos depois). Sempre a lei a punir-nos, a penalizar-nos, ainda que sem moldura penal.

E ainda nos punia no acesso à parentalidade: se querem ter sexo, já não serão alvo de julgamento em tribunal, mas são alvo de julgamento moral que vos considera pessoas indignas de exercer a parentalidade.

É isso, foi só em 2016 que a lei deixou de nos punir, sendo o último passo o igual acesso à inseminação artificial e outras técnicas de procriação medicamente assistida para mulheres solteiras e para casais de mulheres – porque as mulheres, na realidade, também são sempre punidas por serem mulheres.

Que tenha havido leis que discriminavam abertamente até há tão pouco tempo significa que a igualdade vem mesmo longe, porque havia – e tem havido – apoio social e político à discriminação. É por isso que o insulto continua hoje, sempre como forma de punição. É por isso que o bullying acontece ainda hoje, em muitas escolas do país. É por isso que ainda há várias pessoas que acabam por não sobreviver a essa punição.

Há pouco tempo, retomei o contacto com a minha “namorada dos seis anos”, graças às redes sociais. Julgo que todas as pessoas terão recordações semelhantes. Foi bom pôr a conversa em dia, perceber como as vidas evoluíram, mas também vermo-nos a perceber como mudou o mundo à nossa volta. Quando tínhamos seis anos, não fazíamos ideia de que existissem lésbicas ou gays. Aliás, acho que demorou muito mais tempo até termos essa ideia. A mim, atiraram-me sempre com a noção de que seria necessariamente heterossexual e eliminaram – num silêncio absoluto – a possibilidade de me perceber.

Quem me dera ter percebido mais cedo que existia.

Quem me dera ter tido a hipótese de ter uma adolescência, como hoje em dia já acontece (felizmente) com algumas e alguns. Mais: quem me dera ter podido ter um “namorado dos seis anos”.

Ter tido o espaço, em casa e na escola, para saber que a única regra sobre as pessoas com quem devemos relacionar-nos é a do consentimento informado. Ter aprendido logo, em casa e na escola, e na televisão e em todos os contextos, que podia ser hetero, gay ou bissexual – e que tudo era neutro do ponto de vista valorativo. Neutro. Sem as punições que continuam, sem a repressão injustificada, sem os fantasmas, sem os silêncios. Sem os silêncios.

O Código Penal foi revisto em 1982, já depois de eu ter tido a minha “namorada dos seis anos”. Mas ainda hoje são poucas as famílias que perguntam a filhas ou filhos por “namoradas ou namorados”, marcando a neutralidade. Ainda hoje são poucas as escolas que falam abertamente da diversidade de orientações sexuais, contrariando o insulto dos intervalos – e o bullying, continuado, que continua. E, mesmo assim, a Educação para a Cidadania continua a ser um alvo preferencial de Trumpistas e afins, muitas vezes com a exploração da mesma homofobia que esteve na base da criminalização e de todas as punições subsequentes.

Há 40 anos, deu-se um primeiro passo, na lei. Será que daqui a 40 anos existirão várias mulheres que possam dizer que tiveram uma “namorada dos seis anos"? E vários homens que possam dizer que tiveram um “namorado dos seis anos"?

Pois é: a igualdade vem mesmo longe se não a puxarmos já para mais perto.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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