A conversa

Algumas famílias tentam desvalorizar o racismo ou evitar falar sobre ele, mas o silêncio não nos protegerá.

As pessoas negras sabem que em algum momento terão de ter “a conversa” com as suas crianças para as preparar para lidar com o racismo. Começa muitas vezes no pré-escolar e será uma partilha para toda a vida, repetidamente reacendida conforme o racismo irrompe nas nossas vidas.

Há famílias que ouvem a sua filha dizer que não gosta da sua cor, do seu cabelo, do seu nariz. Vêem-nas humilhadas pelos insultos mas, sobretudo, pela tomada de consciência de que o racismo as acompanhará toda a vida – que não há escapatória. Alguns ouvem do seu filho, por vezes logo aos quatro anos, que “não quero ser preto como tu”. Uma mãe chega ao infantário e uma criança dirige-se a ela dizendo-lhe “tu és a mãe da preta!” e o mundo desaba ao perceber que a posição económica que atingiu não as livrará do racismo.

Há crianças a quem é perguntado se “aquela” é a sua “mãe verdadeira”, porque sendo branca só poderia ser adotiva. Essa mãe poderá ouvir da sua criança, em tom suplicativo, “por que é que eu não posso ser branca como tu?”, ziguezagueando ambivalente entre categorias identitárias. Uma mãe negra no parque infantil com a sua criança pode ser “lida” como ama e não como mãe, se o seu filho tiver a pele clara. Há quem tenha que explicar às duas filhas que, por uma ser mais escura do que a outra, terão oportunidades distintas.

Algumas famílias protelam o mais que podem “a conversa” porque não querem magoar os seus filhos, querem que tenham “o mesmo direito a viver a infância” que as outras crianças. Como tal, a primeira vez que se fala sobre o assunto é, muitas vezes, quando a criança chega a casa com um episódio doloroso para relatar, um episódio que é a ponta do icebergue dos inúmeros sinais de discriminação que ela já foi identificando, mas sem saber interpretar completamente. Sem ferramentas para os enquadrar enquanto discriminação, ela poderá pensar que a “culpa” é sua, que ela é “insuficiente”, com sérios custos para a sua auto-estima.

Os adultos – famílias, professores e auxiliares – muitas vezes não estão preparados. Coisas como “da próxima vez diz-lhe que és castanha” ou “que ela ‘também’ é branca” ou “que ela é que é de ‘cor’, porque as pessoas brancas quando nascem são rosa, quando estão doentes ficam verdes, quando estão envergonhadas ficam vermelhas...”, são coisas que fazem pouco sentido perante uma agressão racista. Chamar “branca” não é um insulto equivalente, não tem o mesmo peso histórico. E o que se ganha exactamente em convocar a cor “castanha” e todas as cores do arco-íris? É para dizer ao agressor que ele se enganou na cor?

Mais macabras ainda são as situações em que se diz à criança que foi vítima de racismo que, “se calhar, o colega chamou-te isso porque és e isso não tem mal nenhum, deves ter orgulho da tua cor”. Culpa-se a vítima por uma pretensa falta de autoestima, legitima-se o racismo, escamoteando-o, reiterando-se o insulto. Há também quem aconselhe a que ,“da próxima vez, diz-lhe: ‘Sim, sou e com muito orgulho!’”. É verdade que se reage à agressão e que uma criança orgulhosa das suas origens está mais protegida dos danos psicológicos do racismo. Contudo, pergunto-me se devemos pedir a uma criança que faça um exercício tão difícil de resignificação e inversão simbólica.

Algumas famílias tentam desvalorizar o racismo (“eles são parvos, não ligues!”) ou evitar falar sobre ele (“agora não vais estar sempre a cismar com isso”). No fundo, querem “desescalar” a indignação dos filhos e protegê-los, no longo curso, das consequências de responderem de volta e de se defenderem perante uma situação em que se sentem discriminadas, sobretudo no caso dos rapazes, sobre quem pende o anátema da criminalização. Numa sociedade que não condena e deixa andar impunemente o racismo, esta é uma estratégia de sobrevivência porque a “legítima defesa” sai cara para aqueles que a ousam e é entendida como “má educação” ou “resistência e coação” à autoridade.

Colocar a tónica no mérito e na conformidade é outra via que as famílias encontram para lidar com o assunto, “prova-lhes com o teu esforço e bom exemplo que eles estão enganados”, adicionando sempre “mas terás de fazer duas vezes mais para obter o mesmo reconhecimento”. O caráter falacioso, os laivos assimilacionistas e meritocráticos desta estratégia não devem fazer-nos esquecer que, por detrás da aparente conformidade, o sentido subjectivo é um de combatividade, mesmo que individualista, e que há uma consciência sobre a injustiça e seu caráter transversal, sobre quem são as vítimas e os privilegiados nesta equação. Mas “provar” mudará alguma coisa de substancial, para além da construção da exceção racista?

Há famílias que têm condições para desenhar estratégias mais proactivas. Abordam a questão racial – tenha ou não existido um incidente – com as professoras e outros pais, sugerem actividades pedagógicas, assinalam pontos críticos que devem mudar na escola. Mas, se houvesse mais auxiliares e professores negros, estariam mais “defendidos”, teriam “um espaço seguro para falar lá dentro”.

Há famílias que em casa discutem abertamente o porquê das desigualdades a propósito de uma notícia no telejornal, de um acontecimento na escola, de um livro infantil ou de uma boneca negra que se ofereceu. Estão atentas à auto-imagem da criança. Com a família mais alargada e com a comunidade, fazem um trabalho, a longo prazo, de conexão e valorização dos laços com a cultura e história negro-africana. Vai-se ao país de origem dos pais ou dos avós, mantêem-se vivas a língua materna e as “coisas da terra”, convocam-se histórias e figuras negras de relevo da família, da política, artes, desporto, etc., cultivam-se estéticas negras nos penteados e na indumentária.

E as escolas e as famílias brancas? Falarão de como tudo isto começou sem embarcar na tese do “medo da diferença e do desconhecido”? Conseguirão ir para além da estafada máxima “somos todos iguais” e abordar o racismo e o privilégio branco? Resistirão ao afã nacionalista de glorificação das naus e dos navegantes? Prepararão os seus filhos e alunos/as para, mais do que não dizerem coisas racistas, serem antirracismo? Darão suporte a uma mãe ou pai que denuncie uma situação de racismo na escola? Tomarão eles próprios diligências caso a testemunhem ou ficarão em silêncio, coniventemente?

P.S.: Obrigada às mães, pais e docentes que partilharam comigo a sua experiência, mesmo sendo doloroso contá-la, e que acreditam, como eu, que o “silêncio não nos protegerá”.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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