Ainda sobre o tão esperado discurso de Vladimir Putin

Trata-se claramente de um discurso focalizado no público interno, apelando mais uma vez ao conhecido espírito de sacrifício e sentido patriótico da população russa, preparando-a igualmente para as grandes dificuldades que estão para vir a breve trecho.


O tão aguardado discurso de Putin por ocasião das celebrações dos 77 anos da vitória da União Soviética sobre as tropas do “III Reich” acabou por ser, em parte, um discurso institucional como tantos outros a que estamos habituados em celebrações similares. Referenciando as vitórias do Exército Vermelho, o estoicismo e heroísmo dos seus militares, bem como trazendo à memória coletiva o povo soviético que apoiou abnegadamente esse esforço e homenageando, como é habitual, todos os que tombaram ao serviço da Pátria.

Num segundo momento do discurso, no qual Putin se refere à realidade atual no que concerne às razões invocadas para a invasão da Ucrânia e à diabolização dos EUA e da NATO, para todos nós, cidadãos do mundo livre, conhecedores dos factos e das realidades subjacentes aos mesmos, esta narrativa que de original já nada tem assume foros de uma autêntica ficção.

Neste caso, lutar contra o neonazismo e fascismo ucranianos que grassam no Donbass, sendo o “leitmotiv” dos soldados russos de hoje o mesmo que o dos seus avós que se bateram contra as tropas de Hitler na II Guerra Mundial, faz claramente parte dessa mesma ficção, sabendo nós que a Ucrânia é de entre os países europeus um dos que menos parlamentares de extrema-direita tem na sua assembleia nacional. Claro que para os cidadãos russos, inibidos do acesso à verdadeira natureza dos factos e à imprensa livre, esta confabulação, no plano interno, produz seguramente os efeitos desejados pelo Kremlin.

Porém na ordem externa, a utilização por Putin da velha convicção propagandística, bem ao estilo de Goebbels, de que mesmo “uma mentira monstruosa repetida vezes sem conta de forma convicta, acaba por ser aceite como verdadeira”, sobretudo por mentes menos esclarecidas, mesmo no dito bloco ocidental antagonista. Assim, e de acordo com esta narrativa, hoje como no passado, o povo russo encontra-se envolvido numa luta messiânica contra o nazismo e a opressão a que as populações ucranianas russófonas do Donbass estão a ser sujeitas.

Trata-se claramente de um discurso focalizado no público interno, apelando mais uma vez ao conhecido espírito de sacrifício e sentido patriótico da população russa, preparando-a igualmente para as grandes dificuldades que estão para vir a breve trecho.

Complementarmente, sublinhe-se a retórica habitual, também esta essencialmente orientada para a ordem interna, de que os EUA e a NATO personificam o “mal”, o verdadeiro inimigo e o grande obstáculo ao propósito de superpotência mundial que a Rússia pretende readquirir. Utilizou inclusivamente o argumento de que a Ucrânia estaria a tentar adquirir armas nucleares com ajuda dos EUA.

Por tudo isto e no dizer das suas próprias palavras, “era imperioso levar a cabo uma operação especial”. “Não me deixaram outra opção”, concluiu, conforme tem vindo a reiterar desde que se iniciou o atual conflito.

Do meu ponto de vista, o que se encontrava verdadeiramente em causa e pesou na decisão de invadir a Ucrânia foi a necessidade imperiosa de aproveitar uma janela de oportunidade que em breve se poderia fechar, por via da potencial adesão da Ucrânia à NATO. Assim, ou era naquele momento ou já não seria! Este foi o verdadeiro pensamento de Putin e dos seus conselheiros mais próximos, ou cairia por terra a ambição putinista de restaurar a grandeza da Rússia, colocando sob a sua esfera de influência todos os espaços adjacentes que entende serem seus por direito historicamente adquirido. Para Putin a própria existência de uma Ucrânia independente é um verdadeiro equívoco.

No fundo a única culpa que a Ucrânia tem neste conflito de que é a única vítima é “o facto de existir”, aliás já subliminarmente referido por Putin.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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