Isto em Portugal não acontece

A falta de uma perspetiva feminista na formulação de políticas públicas não é mais evidente do que na notícia sobre a possibilidade de se penalizar médicos de família se tiverem de realizar IVG.

No passado dia 3 de maio, um documento do Supremo Tribunal americano veio confirmar o que muitos suspeitavam - a intenção da maioria dos juízes de votarem para revogar Roe v Wade, o precedente que estabeleceu a legalidade do aborto ao nível federal nos EUA há praticamente 50 anos.

Para muitos, como a senadora democrata Elizabeth Warren, isto é o culminar do movimento conservador no Partido Republicano de estabelecer a sua agenda através do controlo deste órgão. Os últimos casos mais flagrantes foram a confirmação do juíz Kavanaugh, acusado de assédio sexual publicamente durante as suas audiências no Senado, bem como a confirmação da juíza Amy Comey Barrett, a poucos meses da eleição de novembro de 2020, quebrando não só a tradição de não se nomear juízes num período pré-eleitoral, mas também demonstrando um profundo desrespeito pelo último desejo da falecida juíza Ruth Bader Ginsburg. A própria eleição de Trump em 2016 e o seu apoio no seio do Partido Republicano deveu-se muito a este compromisso de nomear juízes conservadores tanto no Supremo Tribunal como em instâncias federais.

Quais então as consequências desta decisão?

Muitos afirmam que, mesmo não sendo o aborto legal ao nível federal, as mulheres e pessoas com útero terão possibilidade de recorrer a este procedimento nos estados, que no âmbito de uma margem de autonomia, escolham que se mantenha legal. Ora este tipo de visão ignora o que são as profundas iniquidades do sistema americano e demonstra uma ignorância sobre a forma como a interrupção voluntária da gravidez funciona mesmo atualmente nos EUA. Os estados são ainda livres atualmente de estabelecer certas regras no acesso ao aborto, como potencial tempo de espera entre consulta e o procedimento ou o número de semanas entre as quais o aborto poderá ser realizado. O movimento conservador também se replica nos conhecidos “crisis pregnancy centers”, organizações financiadas pelo Estado que têm como objetivo o de manipular as escolhas da pessoa grávida para a impedir de abortar, recorrendo muitas das vezes a informação propositadamente manipuladora e a tácticas absurdas como a apresentação de radiografias não solicitadas com mensagens emotivas para a mãe. Estas medidas, e particularmente a revogação do Roe v Wade, não surpreendentemente, irão impactar desproporcionalmente pessoas afro-americanas e latinas de menores rendimentos que não terão capacidade financeira ou acesso a informação sobre onde e como se deslocar a um estado vizinho para abortar.

Mais que tudo, a principal consequência desta medida é mais uma vez a misoginia direcionada às mulheres, retirando-lhes autonomia sobre o seu próprio corpo, e submetendo-as aos valores patriarcais, a uma visão essencialista da mulher que a reduz à sua capacidade reprodutora.

Também em Portugal a luta pela emancipação do corpo da mulher tem sido contenciosa. Em 2007, o nosso atual Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa liderou a campanha do Não, contra a legalização da interrupção voluntária da gravidez, após ter sido convocado um referendo sobre a matéria. Segundo Marcelo, que na altura tinha uma plataforma enquanto comentador semanal em horário nobre, a mulher tinha de se justificar e aconselhar antes de poder tomar a decisão de abortar. Relembro que a questão era se se deveria despenalizar a interrupção voluntária da gravidez.

O referendo em Portugal, felizmente, venceu com 59%, mas a luta contra o policiamento do corpo das mulheres e pela autonomia do corpo de pessoas com útero ainda não foi completamente atingida. A falta de uma perspetiva feminista na formulação de políticas públicas não é mais evidente do que na notícia sobre a possibilidade - entretanto afastada - de se penalizar médicos de família se tiverem de realizar IVG, ignorando que o aborto é uma parte integrante do planeamento familiar, que o ónus da gravidez não se limita à mulher (que, na maioria das vezes é a única pessoa da relação que recorre a métodos contraceptivos e que, infelizmente, não são infalíveis), e que este tipo de indicadores levarão a aumentar o número de médicos relutantes em realizar este tipo de cuidados de saúde básicos (e aqui não me refiro apenas ao aborto, aparentemente também poderão ser penalizados caso as suas utentes testem positivo a Doenças Sexulamente Transmissíveis, o que é meio caminho andado para se deixarem de rastrear este tipo de doenças e aumentar a sua transmissibilidade).

Continuamos a ter apenas dez semanas para poder recorrer a um aborto em Portugal, em comparação com as médias de 16-20 semanas europeias, a sermos tratadas com uma paternalidade inadmissível com a imposição de um período de reflexão de três dias, e a termos de nos deparar com profissionais de saúde que se podem recusar a realizar um direito básico por objeção de consciência e a sermos julgadas pelas nossas opções pessoais num contexto que deveria de ser seguro para todos.

Se este caso e o dos EUA nos demonstram alguma coisa é que o progresso e a luta pelos direitos humanos é constante e, infelizmente, nunca será um dado adquirido. Continuemos então a luta democrática, a exigir o cumprimento do contrato social e a relembrar que não existe verdadeira liberdade enquanto o direito de todos e todas não estiver assegurado.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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