É preciso romper com a banalização e aceitação da violência contra crianças e mulheres

A aceitação da violência, quer pela vítima, quer pelo agressor ou por terceiros, é resultante de crenças infundadas e construídas com recurso à banalização da dita pequena violência.

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@petercalheiros

Há dois meses que os ucranianos vivem um pesadelo com crimes de guerra a serem cometidos diariamente e de forma indiscriminada. Da parte de ucranianos que não conseguiram sair do país chegam relatos de violações, um crime hediondo contra a integridade física e moral da vítima, que, sendo usado como uma forma de opressão, dominação e retaliação contra mulheres e crianças, a esmagadora maioria das vítimas, e embora integre a lista de crimes de guerra, permanece difícil de ser provado como tal.

Esta forma de violência, e crime semipúblico em Portugal, é um atentado aos direitos humanos que usa a pessoa como um objeto e acarreta vários danos psicológicos complexos. É inconcebível e difícil de compreender que existem pessoas capazes de fazer tanto mal a outras.

A vítima sente que perde a sua identidade, apresentando quadros psicológicos associados à depressão, apatia, baixa auto-estima, insegurança, perturbação de stress pós-traumático, pensamentos recorrentes e intrusivos sobre o acontecimento, ativação física e emocional aumentada, abuso de álcool e drogas, etc..

O contexto e as motivações associadas ao crime de violação são diferentes numa situação de guerra, mas devemos recorrer a esta situação hedionda para refletir e agir enquanto família e sociedade sobre a necessidade de romper com a tendência à banalização e à aceitação da violência contra as crianças e as mulheres.

Este não deve ser um tema ou uma preocupação exclusiva das mulheres, mas de todos nós, que deve ser falado e repudiado por todos, começando pela família, no âmbito da formação das crianças e jovens.

É importante relembrar que a violação é um crime associado à criminalidade violenta e grave, e que a situação continuada de guerra e a sensação de que estamos longe não pode servir para legitimar a violência exercida sobre mulheres e crianças perante o olhar de jovens e adultos.

Então, o que fazer?

Pais, outros educadores e toda a sociedade devem mostrar de forma clara e inequívoca aos mais novos que é preciso uma mudança de mentalidade e um salto significativo para uma cultura de respeito e igualdade, educando para a empatia e para o repúdio de toda e qualquer forma de abuso e mau trato, rompendo com a ideia, palavras e atos de que a mulher tem uma posição subordinada ao homem.

Desenvolvemos crenças na infância através da interação com pessoas significativas e do meio em que vivemos e passamos a interpretar o mundo através dessa “lente” de crenças interiorizadas. Neste sentido, cabe-nos enquanto pais/família e pessoas que interagem enquanto profissionais junto de crianças e jovens (estabelecimentos de ensino desde os infantários, instituições de acolhimento, centros de ocupação dos tempos livres, associações desportivas), desmistificar e deixar de perpetuar as crenças infundadas estereótipos culturais que desculpabilizam atos abusivos e influenciam os comportamentos das crianças e jovens, intervindo para quebrar os ciclos de aceitação da violência. Isto começa pela educação sobre a temática da violência e o seu impacto em quem a sofre, em quem a perpetua e também na sociedade, chamando ao centro da conversa o respeito pela autodeterminação do outro, pela igualdade de género, pela promoção dos direitos das pessoas, pautando-se sempre por critérios de respeito pela sua individualidade e contra as condutas abusivas.

A aceitação da violência, quer pela vítima, quer pelo agressor ou por terceiros, é resultante de crenças infundadas e construídas com recurso à banalização da dita pequena violência, à sua legitimação através de factores externos ao ofensor (por exemplo, o consumo) até à conduta da mulher ou, pasmem!, de uma criança, como no caso gritante da decisão judicial do Tribunal da Relação de Coimbra que considerou que um aluno que frequenta o ensino secundário que abusou de uma prima de seis anos deveria ser condenado a uma pena suspensa e a pagar à vítima mil euros de indemnização, alegando, inclusive que a menina não terá oferecido resistência.

Que mensagem queremos transmitir aos jovens, afinal?

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