A urgência de abandonar um tratado obsoleto que dificulta e encarece a transição energética

O Tratado da Carta da Energia é o tratado mais litigioso alguma vez assinado, sendo expectável que a crescente necessidade de uma acção climática mais vigorosa provoque o aumento de ameaças e de processos judiciais ao seu abrigo. Urge pedir aos decisores políticos para agirem em conformidade com os desafios da crise climática – e tal só é possível com a saída conjunta do TCE.

O mais recente relatório do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change - Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas) não deixa margem para dúvidas sobre os malefícios para o clima do Tratado da Carta da Energia (TCE) e do seu mecanismo de Resolução de Litígios Investidor-Estado (ISDS), ao referir expressamente a sua capacidade de bloqueio de medidas de mitigação das alterações climáticas. Segundo o relatório, o ISDS (incluído num grande número de acordos bilaterais e multilaterais) pode ser utilizado por empresas de combustíveis fósseis estrangeiras para bloquear as políticas públicas e legislações nacionais destinadas a eliminar gradualmente a utilização, prospecção ou exploração destes combustíveis.

É o que está já a acontecer, por exemplo, na Holanda, que em Dezembro de 2019 tomou a decisão de proibir, a partir de 2030, a produção de energia a partir do carvão. O país está agora a braços com dois casos de ISDS, em que as duas gigantes energéticas RWE e Uniper estão a exigir, cada uma, mais de mil milhões de euros de indemnização pela descontinuação das suas centrais eléctricas a carvão. Os casos estão ainda a decorrer sob o tecto do Centro Internacional para Resolução de Litígios sobre Investimentos do Banco Mundial (ICSID na sigla em inglês), e se as queixas forem bem sucedidas, como acontece na maioria dos casos, os contribuintes holandeses terão de desembolsar quantias astronómicas para pagar a indemnização; quantias essas que são tão necessárias para custear a transição energética.

O TCE – o Tratado que incentiva o aquecimento global – é um tratado multilateral de comércio e investimento para o sector da Energia, assinado em 1994 após a queda do muro de Berlim, e do qual fazem parte actualmente 53 países da Europa e da Ásia. Portugal é depositário do TCE e, tal como a União Europeia (UE) em geral, reconhece que o tratado colide com os objectivos climáticos e de desenvolvimento sustentável, pelo que, desde 2019, está a decorrer um processo de actualização do tratado. Assim, o Conselho da UE incumbiu a Comissão Europeia de “negociar a modernização das normas de protecção dos investimentos contidas no TCE“. Tanto quanto se sabe – que não é muito, dada a falta de transparência e escrutínio no processo [1] –, os resultados das 11 rondas de negociação que existiram até agora (estando a 12.ª a decorrer neste momento) estão longe de levar à concretização dos objectivos do mandato da Comissão. Ora, sendo necessária unanimidade para alterações de fundo, não é vislumbrável como irá a Comissão chegar a um acordo sobre a modernização do tratado em Junho de 2022, como se pretende.

Considerando o impacto negativo do TCE para a acção climática e a forte probabilidade de insucesso da sua modernização, a sociedade civil europeia vem exortando os signatários do tratado a uma retirada conjunta. São disso exemplo uma petição com mais de um milhão de subscrições e as cartas abertas de mais de 400 organizações e de mais de 400 membros da comunidade científica. Tal retirada conjunta permitiria que os países que acordassem entre si a cessação do artigo 26 do TCE, referente ao ISDS, deixassem de estar sujeitos à abstrusa cláusula de caducidade, segundo a qual as disposições do tratado continuam a aplicar-se aos investimentos passados (realizados antes da retirada) por um período de 20 anos, durante o qual os investidores continuam a poder processar os Estados.

Foi exactamente o que aconteceu à Itália, que, tendo-se retirado do TCE em 2016, está a ser alvo de um processo ISDS iniciado em 2017, por ter recusado conceder à empresa britânica petrolífera Rockhopper uma licença para a prospecção de petróleo no mar Adriático. Usando o TCE, a Rockhopper exige uma indemnização de 350 milhões de USD, o que representa sete vezes mais do que o investimento feito no projecto, cobrindo as suas “legítimas expectativas de lucro futuro” que o TCE salvaguarda.

É também ao abrigo do TCE que os investidores do gasoduto Nord Stream 2 poderiam processar a Alemanha por, no contexto da actual guerra na Ucrânia, ter decidido suspender a certificação do gasoduto. O TCE é o tratado mais litigioso alguma vez assinado, sendo expectável que a crescente necessidade de uma acção climática mais vigorosa provoque o aumento de ameaças e de processos judiciais ao seu abrigo. O Tribunal de Justiça da União Europeia já por várias vezes se pronunciou no sentido da incompatibilidade do TCE com a legislação europeia [2], em especial no que se refere a queixas intra-UE [3], o que em nada impediu os tribunais privados de continuarem a considerar e arbitrar casos ISDS.

Na sessão plenária do Parlamento Europeu de Março passado, os eurodeputados tiveram oportunidade de ser informados e se pronunciarem sobre o TCE – num dos raros momentos de escrutínio democrático sobre o tratado. Nas intervenções dos diversos grupos parlamentares foram manifestadas fortes dúvidas sobre o processo de modernização, tendo sido demonstrado um amplo apoio à saída coordenada da UE e dos Estados-membros do TCE.

É neste contexto e na perspectiva do decisivo momento previsto para Junho próximo que a TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo e a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável levam a cabo no próximo dia 24 de Abril uma acção de rua enquadrada na ‘Dino Tour’, em que um dinossauro gigante insuflável passará por diversas capitais europeias chamando a atenção para o carácter fossilizado e obsoleto do tratado e pedindo aos decisores políticos para agirem em conformidade com os desafios da crise climática – e tal só é possível com a saída conjunta do TCE.

[1] Em Portugal, ainda não foi realizado o amplo debate sobre o TCE que foi recomendado ao Governo pela Assembleia da República em Fevereiro de 2021
[2] TJUE, Caso C‑284/16, República da Eslováquia contra Achmea BV, 6 de Março de 2018: https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=205702&doclang=PT
[3] Caso C-741/19, República da Moldova contra Komstroy, Setembro de 2021: https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=245528&text=&doclang=PT&pageIndex=0&cid=8605954

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