Eunice, a descobrir

A maior parte dos segredos e conhecimentos do seu ofício leva-os consigo para sempre; é muita pena.

Muito tem de ser ainda dito na despedida daquela que está (como Amália) no lugar cimeiro do palco português. Génio é a palavra certa, desde que não esconda a vontade de olhar e escutar e procurar entender como foi possível.

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Eunice Muñoz (1928-2022) Paulo Pimenta

Há algumas pistas no livro de entrevistas a Vítor Pavão dos Santos ou nalguns preciosos documentários da RTP Arquivos, onde também se aloja a primeira série da televisão portuguesa, o surpreendente O Jogo da Verdade, de 1972, em que o seu acting é moderníssimo (que crime ter feito tão pouco cinema!). Mas a maior parte dos segredos e conhecimentos leva-os consigo para sempre; é muita pena. As revistas e jornais sempre lhe perguntaram coisas mais ou menos óbvias. Eu bem tentei perguntar outras, mas nem pelo lado do ICA nem pelo da universidade/FCT consegui que compreendessem a importância e urgência de fazer a história oral deste ofício. Que era transmitido de pais para filhos, em famílias: Eunice era filha de gente de teatro e de circo.

Nos 50 anos da sua carreira, organizei em Oeiras uma primeira homenagem, em que falou do seu trabalho, dos seus mestres, dos colegas como José de Castro, da sorte, da liberdade, do seu abandono da herança familiar dos palcos até a necessidade mais profunda a fazer regressar quatro anos depois, de como sempre se pode aprender alguma coisa mesmo com os encenadores mais atrapalhados. Falou de um modo tão inteligente que desde então acho divertida a oscilação entre chamar-lhe “animal de palco” ou “a grande dama do teatro português”. Animal? Presumo que pela organicidade da sua presença gigante, plena, e pelo instinto com que, dizem (quase com raiva) vários colegas, no primeiro ensaio já estava na linha certa da personagem. O que não a dispensava de trabalhar, inquieta, à procura de ir mais longe, ou de ser a primeira a chegar ao teatro em cada noite, ou de colaborar nos bastidores para que o resultado fosse o melhor.

Assim, a sua presença, honesta, inteira, plena, realizada em cada instante do palco, era instintiva mas intensificada por tudo o que aprendera e trabalhava: o uso dos olhos, das mãos, dos braços que radiavam muito para além das mãos, os abraços em que parecia que era uma multidão que abraçava, a concentração total na contracena, os tempos, o uso sábio dos contrastes, tudo o que ganharemos em observar e debater.

Pois, há uma inteligência muito grande nesse animal, e também uma cultura, uma opção profunda pela arte e não pelo dinheiro ou pela imagem ou sequer pela beleza, uma escolha dos melhores textos e encenadores. Teve muita pena de não fazer mais Shakespeare, mas de Racine a Beckett, de Tchékhov e Cocteau a Genet, Santareno, Tenessee Williams, André Brun, fez de tudo, do Variedades à Cornucópia. A versatilidade de registos, da tragédia à farsa, da revista à opereta, em todos eles se agigantando, é outra das características que a torna (como Amália), ia a dizer monstruosa, se não voltássemos à ideia de um animal bruto que não era. Inteligência também das tábuas, do que aprendeu com grandes actores e encenadores e do que desenvolveu em 80, oitenta anos de carreira (se só contarmos a estreia, aos 13, no Nacional, mas aos cinco já cantava no teatro ambulante do pai): “inteligência cénica”, disse dela Fernanda Montenegro, outra monstra sábia.

Inteligência ainda de compreender o país em que nasceu: de como uma certa doçura sorridente e uma alegria profunda, interna, a temperar a argúcia, a lucidez, a introspecção e mesmo a severidade, lhe permitiriam, sem alaridos, cumprir a sua missão nesta vida, mil vezes cumprida.

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