Atrasos no Ferrovia 2020 fazem CP gastar mais 14 mil litros de combustível por dia

Anos de atraso na modernização de linhas onde já poderiam estar a circular comboios eléctricos em vez de material a diesel representam 30 mil toneladas de CO2 emitidas e um custo de 2,4 milhões de euros. Por cada dia que passa de atraso no Ferrovia 2020, são mais 14 mil litros de gasóleo gastos.

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As automotoras UTD592 que estão afectas ao Oeste e ao Douro gastam 191 litros aos cem Ines Fernandes

Se o programa Ferrovia 2020 tivesse terminado a tempo, Portugal teria hoje mais 268 quilómetros de vias-férreas electrificadas nas linhas do Algarve, Oeste e Douro. Mas a soma dos atrasos nestes projectos já vai em quatro anos e três meses, sendo previsível – numa perspectiva conservadora – que estas electrificações sejam concluídas com um total de nove anos e meio de atraso.

O PÚBLICO fez as contas e concluiu que a manutenção de comboios a diesel nestas três linhas, durante este período, equivale à emissão de 45.626 toneladas de CO2, a que corresponde um custo de 3,7 milhões de euros.

Mas como a produção de energia eléctrica também tem custos ambientais, deve considerar-se apenas dois terços destes valores pois comboios eléctricos emitem três vezes menos CO2 do que o gasóleo. É esse, pelo menos, o resultado no simulador ambiental da CP quando se comparam viagens de idêntica distância – uma num comboio eléctrico entre Lisboa e o Entroncamento (2,01kg de CO2 emitidos) e outra em comboio a diesel entre Lisboa e as Caldas da Rainha (5,79kg). Por essa razão, se aquelas três linhas já estivessem electrificadas, ter-se-iam poupado dois terços dos 3,7 milhões de euros de emissões de CO2, ou seja, 2,4 milhões de euros.

Os cálculos do PÚBLICO são, ainda assim, bastante conservadores porque omitem o transporte de mercadorias, no qual os atrasos nas electrificações, em particular na linha Évora-Elvas (que deveria ter ficado concluída em 2019), são responsáveis por milhões de toneladas de CO2 que não entraram nestes cálculos.

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Já do lado dos passageiros, a CP gasta por ano 1,4 milhões de litros de gasóleo na linha do Algarve, 2,7 milhões no Douro e 2,1 milhões no Oeste (dos quais só se considerou 1,1 milhões para o troço Lisboa-Caldas da Rainha porque a electrificação da parte norte desta linha não está prevista no Ferrovia 2020).

As automotoras que circulam no Algarve (UDD450) gastam 126 litros de gasóleo aos cem quilómetros, as que estão afectas ao Oeste e ao Douro (UTD592) gastam 191 litros aos cem e as locomotivas que circulam na linha do Douro 228 litros aos cem. É tudo material velho, que gasta muito e daí a urgência de substituí-lo por unidades eléctricas.

Não surpreende, assim, os pesados encargos ambientais da manutenção desta situação. Por cada dia que passa de atraso no Ferrovia 2020, são mais 14 mil litros de gasóleo gastos e 35 toneladas de CO2 emitidas nos carris portugueses. A electrificação daquelas três linhas poderia reduzir esse montante em 11,5 toneladas por dia.

Mais de um terço das emissões provém dos transportes. A Europa tem como grande objectivo chegar a 2050 com impactos neutros no clima e daí a importância da descarbonização neste sector. Em Portugal, o PNI2030 prossegue o objectivo de electrificar praticamente toda a rede ferroviária nacional e nele constam os troços em falta da linha do Oeste (Caldas da Rainha-Louriçal) e do Douro (Régua-Pocinho). Já a linha do Leste e o ramal que serve as minas de Neves Corvo dependem de “estudos de viabilidade e pertinência”.

Descarbonizar as frotas

Mas o modo ferroviário é até o menos poluidor de todos os modos de transporte. Francisco Ferreira, da Zero, diz que no modo rodoviário é essencial a descarbonização das frotas, sejam elas de autocarros, de táxis, TVDE, ou de veículos de empresas de distribuição. As frotas andam o dia todo, algumas também durante a noite, e por isso devem ser a prioridade. É o caso dos táxis. São cerca de 3000 em Lisboa. Parecem poucos comparados com todos os automóveis que entopem a cidade, mas enquanto a maioria destes circulam às horas de ponta no movimento pendular casa-trabalho, os táxis andam o dia todo e alguns também a noite toda.

Nas empresas de distribuição, este ambientalista destaca a DPD que decidiu operar em Lisboa com uma frota cem por cento eléctrica. “Eles têm a possibilidade de carregar durante a noite, em regime bi-horário, e circular durante o dia. É mais barato e é este o caminho a seguir”, diz. Os CTT, embora lentamente, vão também na mesma linha.

A própria Uber também já tomou iniciativas. Até 2025, em sete capitais europeias – entre as quais Lisboa –, metade dos quilómetros realizados terão de ser feitos em veículos com emissão zero. “Eles até admitem que poderia ser 100% se houvesse ajudas das autarquias ou do Estado”, diz Francisco Ferreira. De resto, a Uber já deixou de admitir veículos a gasóleo ou gasolina na sua plataforma. Os novos condutores só podem entrar com carros eléctricos.

Faltam os táxis, que, por enquanto, não têm tido medidas integradas para a descarbonização, dependendo da (boa) vontade de cada proprietário no momento de trocar de veículo. Acresce que o facto de muitos circularem 24 horas por dia dificulta a opção para o modo eléctrico por não haver tempos mortos para carregamento.

Quanto aos autocarros, Francisco Ferreira diz que “tê-los em modo eléctrico em vez de gasóleo faz uma diferença considerável porque são veículos pesados que gastam muito, percorrem muitos quilómetros por dia e circulam em zonas da cidade onde a qualidade do ar necessita de ser mais salvaguardada”. Por isso, também aqui, a descarbonização deve ser prioritária, sendo que algumas destas empresas são públicas e por isso “o accionista, sendo o Estado, tem uma responsabilidade acrescida nesse processo de mudança”.

A percentagem de autocarros eléctricos na Carris é residual: são só 15 em 740. Mas a empresa estabeleceu como limite ter 100% da sua frota eléctrica em 2040. Em 2030 tem uma meta intermédia: quer que a maioria dos autocarros sejam eléctricos, seguidos dos autocarros a gás natural e só depois os de combustão de gasóleo.

Paralelamente, a Carris opera com 48 carros eléctricos, veículos que são verdadeiros ex libris da própria cidade de Lisboa. Para o ano começam a chegar 15 novos eléctricos articulados.

Nos STCP, os autocarros eléctricos são apenas 20 em 420, mas uma candidatura ao PRR permitirá à empresa adquirir mais 48 em 2023. O objectivo é chegar a 2027 com 156 autocarros eléctricos, ou seja, 37% da frota.

Na Europa, são Londres, Paris e algumas cidades francesas de média dimensão que, segundo Francisco Ferreira, lideram as boas práticas da descarbonização. “Por exemplo, Paris vai criar uma zona central interdita a veículos a combustão e dar prioridade a grandes espaços pedonais.”

Sem mudanças nos transportes não há transição energética

Álvaro Costa, professor da Faculdade de Engenharia do Porto, diz que a guerra na Ucrânia poderá inverter as prioridades da Europa na descarbonização. “Tem havido um grande voluntarismo nessa matéria, mas não sei se vai continuar. Vamos ter a Europa a pagar a reconstrução da Ucrânia quando a guerra acabar, vamos assistir a um aumento das despesas militares (o Orçamento do Estado da Alemanha tende para os 2% para a Defesa) e por isso não vai sobrar muito para o apoio à descarbonização dos transportes, que era visto como um financiamento consensual”, diz.

Este investigador acredita que o foco da transição energética vai estar agora na indústria, na própria produção energética, para diminuir a dependência da Rússia. “Trazer o gás dos Estados Unidos é caro. Agora a prioridade é o gasoduto da Península Ibérica para a França e com as pressões para deixar de comprar à Rússia, com as dificuldades em lidar com uma opinião pública muito susceptível ao aumento do custo da energia, até há quem defenda um passo atrás, ou um compasso de espera, na transição energética e aceite um aumento da produção do petróleo. Aliás, em Portugal já houve quem falasse em reabrir a central a carvão do Pego...”

Deste modo, a decisão das famílias e empresas para comprarem veículos eléctricos dependerá cada vez mais dos próprios, da sua consciência ambiental, do mercado e do progresso tecnológico (que costuma vir acompanhado de redução de custos), do que propriamente de incentivos do Estado.

Apesar deste diagnóstico pessimista, Álvaro Costa alerta que os transportes não podem ser esquecidos porque sem políticas correctas neste sector, que é altamente poluidor, não haverá transição energética.

A opinião pública também conta e a pressão de movimentos cívicos vai fazendo o seu caminho, se bem que, como sempre, com mais intensidade na Europa além-Pirenéus. O Back on Track (Regresso aos Carris) é um desses movimentos com representação na Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Inglaterra, Itália e Suécia, que defende o regresso dos comboios nocturnos e o aumento das relações ferroviárias transfronteiriças na Europa. O grande argumento é, precisamente, o contributo para a descarbonização que se obtém se se substituírem viagens de avião por comboios nocturnos entre os 800 e os 1500 quilómetros. É que um avião emite 14 vezes mais CO2 por passageiro e por quilómetro do que um comboio.

As próprias empresas ferroviárias fazem questão de evidenciar a vantagem ambiental do comboio. Em Portugal, o simulador ambiental da CP permite ver quanto se poupa ao optar por uma viagem de comboio face ao transporte individual (a empresa não quis comparar-se com o autocarro). Por exemplo, numa viagem de Intercidades entre o Porto e Lisboa, as emissões de CO2 por passageiro são de 4,92kg enquanto de automóvel são quase oito vezes superiores, representado 39,22kg.

No transporte de mercadorias procura-se também evidenciar os ganhos ambientais do modo ferroviário. A Medway tem um simulador no qual se fica a saber que, por exemplo, transportar 100 toneladas em comboio entre o Porto de Leixões e a Bobadela reduz as emissões de CO2 em 1,9 toneladas face ao mesmo transporte por camião. Uma poupança de 69%.

Esta empresa já realiza 86% da sua operação com tracção eléctrica em Portugal, mas em Espanha apenas 13% da sua quilometragem é realizada com comboios eléctricos.


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