Parede de tijolo

Nos momentos difíceis, eu lembro-me de pensar, como é comum, que nunca ninguém me poderia compreender. Não me ocorria que outros campos já tinham sido dizimados por aquela tempestade.

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"Não sabia que já tinha havido outras mulheres a sofrer como a minha mãe, e ainda menos outras crianças a sofrer como eu" Marco Bianchetti/Unsplash

Há uns dias tive um encontro estranho e poderoso que não me sai da cabeça desde então. Uma dessas situações que, caso não tivesse sido real, poderia ser produto de um sonho, de uma fantasia, ou de uma ficção, dada a sua inverosimilhança.

O meu namorado organizou um jantar e uma prova de vinhos em nossa casa para alguns convidados. Quando cheguei, já lá estava um casal. Não conhecia a rapariga. Conversámos antes de chegarem as restantes pessoas. Os nossos filhos brincaram e comeram a sopa juntos. Falámos de sonhos, da vida no campo, do Tinder, de signos, de maternidade. Ela chama-se Madalena, como eu, tem mais ou menos a minha idade, e um filho da idade de uma das minhas filhas. Mas estávamos longe de saber que nos unia um elo muito mais profundo. É que nós não partilhamos apenas o nome e o palato pouco treinado para a enologia e para a distinção de sabores vinícolas. Descobrimos, com grande comoção, que tínhamos partilhado o mesmo padrasto. Tratando-se de uma coincidência curiosa em qualquer circunstância, sendo o padrasto que foi, transformou-se num momento de íntima ligação. Demos um abraço. “Ele também estragou a tua infância?” e rimos. Antes de mim, ela. Antes da minha mãe, a dela. Ele chegou à sua vida quando ela tinha seis anos. Chegou à minha quando eu tinha seis anos. Esteve uns anos com a mãe dela e depois começou a namorar com a minha.

Foi como o encontro de dois porquinhos após o lobo mau ter destruído as suas casas, cuja estrutura emocional tinha a fragilidade de paredes de palha.

Nos momentos difíceis, eu lembro-me de pensar, como é comum, que nunca ninguém me poderia compreender. Não me ocorria que outros campos já tinham sido dizimados por aquela tempestade. Não sabia que já tinha havido outras mulheres a sofrer como a minha mãe, e ainda menos outras crianças a sofrer como eu. Tinha noção de que havia gritos noutros corredores, violência e abusos noutros lares. Mas os berros naquele timbre, a agressividade naquele compasso, a perversidade naqueles gestos, eu achava que era bagagem minha. Um filme exibido só para mim. O meu passado, único e indivisível, a minha história, que me caberia a mim calar.

Como poderia adivinhar que existira outra menina, outra enteada, outra Madalena, a chorar pela sua mãe por causa daquele homem? Ainda agora me parece esquisito pensá-lo. Lembra-me os universos paralelos, as realidades multidimensionais, os metaversos, qualquer coisa desse âmbito. Vi um reflexo num lago, onde apesar de a água ondula não deixa de poder ser reconhecida.

Sem desconsiderar as nuances que tornam única cada história, o que é verdade até para aqueles que dividem um mesmo tecto, acho que a violência se assemelha muito num ponto: na forma como faz sentir quem a vivencia, daí haver tanta empatia entre pessoas que passaram por situações assim. Tratando-se do mesmo homem, a afinidade que nos ligou, às duas, dispensa qualquer elaboração. Pelo menos era isso que dizia o nosso olhar, carregado da mais intensa compreensão. “Chamava-lhe o cagalhão”, confessou-me. Eu sorri, mas tive vontade de chorar. Porque poderia ter sido eu a chamá-lo assim. Fui eu, à minha maneira. Sem esse vocábulo, mas com sinónimos adjectivais.

Desde este encontro que tenho pensado nas pessoas e no seu silêncio. Compreendo tão bem o silêncio. Sempre o cultivei, nesta matéria. O silêncio ainda parece, para tantas mulheres, a salvação. O silêncio usa-se porque se confunde a fala com a fraqueza, a partilha com a exposição, e a exposição com a vergonha. Acusar a violência é assumir que a permitimos, e isso, por vezes, parece mais doloroso do que qualquer agressão. O silêncio não é apenas interiorizado, é, muitas vezes, incentivado.

A minha mãe não se silenciou, e pelo que entendi, a da Madalena também não. Mas foram, de várias formas, silenciadas. Na época, as denúncias feitas à polícia resultaram num silêncio incompreensível por parte das autoridades. Sinto que se avançou desde então nesta pressão para que se cale. Não sei se quem cala consente, mas sei que quem cala também sente. E, se sempre achei que o silêncio era fórmula de sobrevivência, entendo agora que possa ser exactamente o oposto. E que é urgente falar. Porque, mesmo nos casos em que tudo parece acabar, pode estar a acabar apenas para nós. O nosso fim pode conter outro início. E a nossa palavra pode evitar o sofrimento seguinte. Ele foi expulso de casa dela, e entrou na minha, pronto para começar do zero, numa aura de impunidade. E quando foi expulso da minha, partiu para a seguinte, do mesmo modo. As nossas histórias estão interligadas. A minha, a dela, e a de outras mulheres. Entendo agora que uma denúncia e uma partilha podem ser a parede de tijolo do porquinho seguinte. E não só do próximo. Falar revela-se, afinal de contas, um acto de força inesperada.

Volto ao abraço que demos. O abraço de dois silêncios quebrados. E penso no poder que há neste abraço de duas pessoas com a mesma cicatriz, que parece ténue e adormecida, mas que, na luz certa, volta a sobressair. Foi um momento de união. Uma união que desejaríamos não ter mas que, existindo, carrega uma beleza que seria impossível não detectar. A beleza de flor em terreno devastado. E penso que esta partilha e este abraço conteve futuro, ternura e esperança. E que foi, em si, parede de tijolo erguida.

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