Que decisões são estas que condenam os profissionais do setor da cultura à precariedade?

Os acórdãos dos tribunais caem na falácia de enfatizar todas as especificidades da relação laboral dos profissionais da cultura em causa para, com base nelas, desconsiderarem todos os indícios de laboralidade.

O Museu de Serralves e a Casa da Música no Porto, têm sido palco de uma verdadeira cruzada contra a precariedade, numa luta que tem sido a demonstração cabal de que a especificidade da atividade dos profissionais da cultura ou ligados à cultura é uma arma apontada à subordinação jurídica que os tribunais teimam em não reconhecer. Mas há limites para a falácia jurídica que deixa estes profissionais sentados na sala de espera da precariedade.

Na Casa da Música o caminho até ao reconhecimento do vínculo contratual defronta-se hoje com desoladores obstáculos, como é o caso dos assistentes de sala que, entre outras tantas funções, se ocupam da receção, informação e acompanhamento de artistas e público para as salas e lugares. Se, no caso dos artistas, a autonomia (marca indelével do processo criativo) podia apelar aos velhos do Restelo do equívoco jurídico (que confunde liberdade criativa com o esvaziamento do poder de direção da entidade patronal), nos assistentes de sala nem esses fantasmas fazem qualquer sentido. Já o tinha dito a propósito da advocacia - encarada, tradicionalmente, como uma profissão liberal - e das relações laborais com características especiais como é o caso do trabalho doméstico ou dos praticantes desportivos: a subordinação pode continuar a existir.

A interpretação, diria ardilosa, do artigo 12.º do Código de Trabalho que se encontra na jurisprudência tem esmagado a presunção de laboralidade, que funciona mediante a verificação de pelo menos dois factos índice: i) lugar da atividade e ii) e equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencentes à entidade patronal, iii) cumprimento pelo trabalhador de horas de início e de termo da atividade iv) pagamento, com determinada periodicidade, de uma quantia certa e v) ocupação de cargos de direção pelo trabalhador. Verificados dois destes factos e não sendo feita prova em contrário, há que reconhecer a existência de um contrato de trabalho.

O recente Estatuto dos Profissionais de Cultura veio alargar esta presunção, adequando-a às especificidades da atividade profissional no setor da cultura em matéria de tempo e local de trabalho, de forma a evitar dúvidas interpretativas e dar por verificados os factos índice que lhes estão associados. Importa recordar que o processo de elaboração deste estatuto, apesar de todas as críticas ou insuficiências que lhe possam atribuir, correspondeu a um desejo manifesto dos profissionais da cultura de dar mais dignidade laboral ao setor e de lhes garantir os direitos que são reconhecidos a qualquer outro trabalhador por conta de outrem. Veremos se muda alguma coisa.

Nos acórdãos que envolveram os trabalhadores da Casa da Música e de Serralves foi relevado o facto de o trabalho continuar a ser assegurado por outro elemento da equipa, após diligência destes trabalhadores na procura de o garantir e mediante comunicação às chefias (por exemplo, em caso de doença). Então o zelo demonstrado por estes trabalhadores é o elemento que leva a considerar que não existe uma relação própria de um contrato de trabalho? Uma enfermeira a tempo parcial que comunica à chefia, após o envio prévio da sua “escala”, que vai ter de trocar o seu turno com uma colega deixa por isso de ser considerada uma trabalhadora a quem possa ser reconhecida a existência de vínculo laboral? O facto de existir uma articulação em equipa releva? A existência de trabalho em equipa ou em grupo reconhecida pela Lei n.º 4/2008 e mantida no Estatuto é uma das marcas identitárias desta relação laboral especial e que, na verdade, reflete a pressão destes trabalhadores sobre os quais recai o peso da célebre máxima the show must go on.

No caso dos educadores do museu será o facto, como também é realçado nas sentenças, de um trabalhador trabalhar um mês e depois não trabalhar no mês seguinte impeditivo de celebrar um contrato a termo ou, caso estejam abrangidos pelo novo estatuto, um contrato de trabalho com atividade descontínua? O contrato a termo não existe, também, e justamente, para fazer face a necessidades temporárias onde se enquadram projetos, tal como se prevê no artigo 140.º do Código do Trabalho? O facto de o horário das trabalhadoras dos serviços educativos ser variável consoante as necessidades, disponibilidades demonstradas e a programação, e de receberem em função das horas de trabalho prestadas é motivo para a qualificação da relação como prestação de serviços? Foi ainda referido o facto de não existir dependência económica pelo facto de, em certos casos, exercerem outra atividade para poderem fazer face à sua situação precária. Algo kafkiano, não?

Certo é que os acórdãos caem na falácia recorrente de enfatizar todas as especificidades da relação laboral dos profissionais da cultura em causa para, com base nisso, desconsiderarem todos os indícios de laboralidade. Quando a questão é que na cultura os factos são “fatos à medida” de uma atividade que é, em alguns aspetos, muito diferente das outras, não podendo isso ser fundamento para uma condenação à precariedade laboral.

Acresce que, como atestam contratos de trabalho celebrados pela Fundação de Serralves, a especificidade que possa existir em termos de período normal de trabalho e sua retribuição é passível de enquadrar. A própria Fundação já encontrou - e bem! - a solução: calculando a retribuição de acordo com uma regra de proporcionalidade considerando o número de dias de trabalho prestados anualmente por trabalhador a tempo completo em situação comparável.

Valerá a pena revisitar o brilhante escrito do Professor António Monteiro Fernandes intitulado O triste fado dos maestros titulares ou o problema da subordinação jurídica invisível. O artigo fazia uma apreciação crítica de um acórdão, de 2013, do Supremo Tribunal de Justiça, relativo a um maestro do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC). O tribunal não reconheceu a existência de vínculo contratual. No caso, a autonomia e o poder do maestro de dar instruções aos músicos da orquestra fez com que os juízes, surpreendentemente, demolissem o edifício da relação laboral construída, não pela ficção, mas pela realidade da sua condição de trabalho no TNSC, a tal realidade em que se deve basear a decisão e a apreciação judicial.

É tempo de os tribunais libertarem os profissionais da cultura da inevitabilidade da precariedade. Os maestros da legalidade precisam de mudar de batuta ou de repertório, que é como quem diz, de deixarem a lei cumprir a sua função.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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