“Não paguem a ninguém que diz que vai buscar crianças órfãs à Ucrânia”

Em entrevista ao PÚBLICO e à Radio Renascença, a presidente da comissão nacional de protecção de crianças e jovens em perigo alerta para famílias burladas por quem diz que vai buscar órfãos à Ucrânia. E acrescenta que em tempo de guerra as adopções internacionais são proibidas. “A generosidade dos portugueses é de uma enorme responsabilidade”, diz.

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"É importante estarmos alerta para situações que possam parecer menos claras", diz Rosário Farmhouse daniel rocha/PUBLICO

A guerra na Ucrânia voltou a colocar os refugiados deste país no caminho de Rosário Farmhouse, agora presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), mas antes directora do Serviço Jesuíta aos Refugiados de Portugal e Alta comissária para a imigração e diálogo intercultural. Desde o início da guerra, há precisamente um mês, cerca de 6000 crianças entraram em Portugal com mães, avós ou adultos a quem a família delegou responsabilidades. Para as proteger, não basta ir buscá-las ou acolhê-las, diz Rosário Farmhouse. É preciso garantir que trazem documentos, e que há registo da saída da Ucrânia e da entrada em Portugal, para que um dia, quando a guerra terminar, possam regressar ao seu país e reunir-se com as suas famílias.

Muitos dos refugiados vindos da Ucrânia para Portugal são crianças. Como se garante a sua protecção em Portugal?
A melhor forma de protegermos é através de uma articulação muito grande entre as várias entidades e de uma atenção por parte da sociedade de acolhimento. É importante estarmos alerta para situações que possam parecer menos claras, principalmente de crianças acompanhadas por adultos que não os seus familiares.

É preciso haver uma formalização dessa relação para se garantir que a criança esta a ser protegida. Neste momento existem orientações dos vários Estados – Estados-membros [da União Europeia] e fronteiriços [da Ucrânia] – para haver um registo à saída da Ucrânia e à entrada dos Estados-membros, para se saber minimamente o percurso destas crianças e garantir que quando a guerra acabar possam reunir-se com a sua família.

Para garantir que os seus direitos são totalmente assegurados devem desde logo pedir a protecção internacional ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), para terem número de segurança social, de utente de saúde, de identificação fiscal. Mas também para que o SEF, através de um primeiro contacto, possa aferir da relação que existe entre a criança e o adulto. [Num segundo momento] o Ministério Público irá formalizar essa relação, caso esse adulto não seja o representante legal.

A protecção através da formalização ganha particular relevo porque em contexto de guerra e de fuga, muitas pessoas chegam aos países de acolhimento sem documentos?
Sem dúvida que não ter documentos resulta numa fragilidade ainda maior para crianças e adultos. Os Estados fronteiriços estão a ter a preocupação de identificar esses casos para lhes dar maior protecção. Por isso digo que o contacto com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras é importante, para garantir que os direitos serão assegurados. Em Portugal ainda não temos números muito expressivos de pessoas ou de crianças indocumentadas.

Quantas crianças da Ucrânia já chegaram a Portugal desde o início da guerra?
Cerca de 6000 crianças já entraram em Portugal. De uma forma geral, com familiares ou com adultos de referência, mas com autorizações ou documentos das mães a delegar naquele adulto. Ainda não temos números conhecidos de crianças completamente isoladas, que tenham vindo sem nenhuma referência. Temos alguns, mas são muito residuais.

Os riscos são grandes para estas crianças não acompanhadas?
Em contexto de guerra, há uma enorme probabilidade de existirem equipas organizadas de tráfico de crianças, e de circunstâncias que separam indesejavelmente as famílias. Também por isso é importante haver este registo [das saídas da Ucrânia e da entrada noutros países]. Esta generosidade dos portugueses é também de uma enorme responsabilidade, e deixo aqui um apelo a quem está nas equipas de resgaste, portugueses e portuguesas que se estão a unir para ir à Polónia, à Roménia, à Moldávia buscar pessoas. É importante garantir que as pessoas tragam documentos, que as crianças venham devidamente identificadas e com algum adulto que seja uma referência para elas.

A CNPDPCJ integra um grupo de trabalho que junta também a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a Segurança Social, o Ministério Público, o SEF e o Alto-Comissariado para as Migrações. Já há resultados concretos dos encontros deste grupo de trabalho?
Estamos a ter reuniões quase diárias. A todo o momento estamos a receber informação, seja através das reuniões, seja pelo grupo WhatsApp [que reúne estas entidades]. Foi criada uma Linha de Apoio 300 511 490 para clarificar todas as dúvidas das pessoas. E aproveito para dizer que quem quer acolher deve fazê-lo através da plataforma do Estado, PortugalforUkraine.gov.pt. O importante é que, qualquer que seja a circunstância, não deixem de formalizar aquilo que é o seu acolhimento.

O que pode acontecer se não o fizerem?
Já fomos alertados de que existem burlas. Há famílias que querem acolher a serem burladas por pessoas que lhes dizem ‘eu vou lá e vou trazer’, mas para isso pedem que lhes seja adiantado dinheiro para o transporte. Com isto, há pessoas a pagarem para o transporte de crianças órfãs da Ucrânia. Mas isso não é verdade, não pode ser verdade. O meu apelo é para que não paguem a ninguém que diz que vai buscar crianças órfãs da Ucrânia. Quem quer que seja que esteja a dizer que consegue ir buscar uma criança por xis dinheiro está a mentir. A vinda de crianças desses grupos – de orfanatos que foram destruídos e que foram deslocalizados para a Polónia, para a Moldávia ou para a Polónia – é tratada via Estados. Os pedidos para acolher são feitos entre Estados.

Em Portugal como está a ser feita a selecção das famílias de acolhimento?
Tem que haver uma aferição da motivação por que acolhem, da disponibilidade. Todos nós temos que gerir esta capacidade de acolher sem saber por quanto tempo. Pode ser por pouco mas pode ser por muito. E quando se acolhe uma criança tem que haver esta capacidade de pensar que pode ser por muitos meses.
Passado esse tempo, a família vai ter que devolver a criança. Durante anos de guerra, os Estados proíbem adopções internacionais precisamente para evitar adopções de crianças que têm família e que foram separadas por causa da guerra.

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