Encanto: o que cozinha Avillez quando não usa carne ou peixe?

No menu vegetariano do restaurante Encanto, o chef explora caminhos novos na sua cozinha e dá a conhecer um “mundo vegetal encantado”.

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A sala do Encanto, que era a do Belcanto original Bruno Calado/Grupo José Avillez

Há maior variedade de ingredientes no mundo vegetal do que no mundo animal, e, no entanto, habituámo-nos a pensar os pratos que cozinhamos a partir da proteína animal. Sair da lógica do ‘peixe ou carne?’ é muitas vezes um desafio complicado para um cozinheiro. No Encanto, o restaurante que acaba de abrir no espaço do Belcanto original, em Lisboa (e que durante três curtos meses pré-pandemia foi o Canto, numa parceria com os músicos Ana Moura e António Zambujo), José Avillez decidiu enfrentar esse desafio e apresentar um menu totalmente vegetariano.

Numa conversa com a Fugas no dia da abertura, Avillez explicava que a transição para um menu à base de vegetais (mas não vegano, já que inclui ovos, manteiga e queijo) não foi imediata. Nas experiências que fizeram inicialmente, ainda pensavam recorrer, por exemplo, a caldos de carne ou de marisco. Foi com o decorrer do trabalho que se foram apercebendo que não era necessário, para acrescentar profundidade de sabor, usar produtos animais.

O menu, que pode sofrer alterações dependendo da disponibilidade de alguns ingredientes, revela os vários caminhos, muito diferentes, que os vegetais permitem. Isso é evidente logo nos snacks iniciais. Um deles tem como base um crocante de linhaça, sobre o qual é servido aipo com tonburi, um “caviar da terra” feito das sementes do fruto de um arbusto – são três elementos que se comem de uma dentada só e que trazem o estaladiço da base e a frescura do aipo e do tonburi.

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Os snacks com os quais se inicia o menu do Encanto Bruno Calado/Grupo José Avillez

Outro exemplo, ainda nos snacks, é composto por uma base estaladiça de feijão com abacate, leite de tigre e flores, uma combinação fresca e cheia de sabores fortes que se espalham pela boca. Noutra linha de sabor, a seguir menos a frescura e a explorar mais a profundidade, há, ainda nos snacks, um peixinho da horta com molho romesco e um “ovo” dourado recheado com húmus.

Numa entrada divertida, servida antes do pão, Avillez vai buscar as suas memórias de um petisco comido num pequeno restaurante em Beirute, que incluía tremoços e favas. No Encanto, essa memória traduz-se numa azevia de favas acompanhada por um shot que contém, desta vez em dois goles, todo o sabor e salinidade dos tremoços.

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Caril verde com legumes verdes e citrinos verdes Bruno Calado/Grupo José Avillez

A manteiga fumada que acompanha o pão de espelta é de um elegante cinzento que lhe vem das cinzas de sálvia. Seguem-se outros pequenos pratos (o menu é pensado num crescendo de intensidade, mas sempre com doses pequenas, deixando-nos, no final, confortavelmente saciados) com combinações inesperadas: cenoura em diferentes texturas, com azeitona e leite de pinhão; beterraba com batata-doce e Dijon; gema confit com tupinambo, caldo de feijão e trufa. Neste início de refeição, o vinho proposto na harmonização foi o Procura na ânfora 2018, de Susana Esteban.

Na linha da frescura, veio depois um caril verde com legumes verdes e citrinos verdes, com o molho, muito leve, a envolver ervilhas crocantes e vagens verdes estaladiças. A couve-coração ligeiramente fermentada, que foi servida com milhos de cebola com Queijo da Ilha, parecia uma miniposta de bacalhau com puré de grão, mas revelava-se depois num sabor muito próprio e cheio de personalidade. A acompanhar o primeiro, um vinho do Dão Álvaro Castro Reserva 2020, e o segundo, um Douro, o Lacrau 2019.

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Sobremesa de merengue com creme de pinheiro Bruno Calado/Grupo José Avillez

O arroz negro (não é tinta de choco, é carvão activado) com trufa preta, manteiga de ovelha e espinafres crus é um prato envolvente e de conforto, ao qual se segue uma empada de uma leve e saborosa massa folhada com cogumelos e alho francês, muito, muito perto, no sabor e intensidade, do que poderia ser um prato de carne e que pediu um vinho mais intenso mas com frescura – o escolhido foi o Território Vivo Baga tinto 2020, de Filipa Pato.

Para terminar, as sobremesas: duas mais doces, o merengue com creme de pinheiro e kumquat e outra, estaladiça, com maçã e yuzo, mas antes delas, a pré-sobremesa (a ideal para quem preferir uma opção menos doce), com sorvete de morango, creme de coco (e aqui o encanto está na conjugação dos dois sabores, mas também das duas texturas e até das duas temperaturas) e uns muito surpreendentes pickles de brócolos, a mostrar que aqui não há fronteiras fixas.

São os 12 momentos de um menu vegetariano com o qual Avillez espera encantar sem carne nem peixe. É, como o próprio diz, o seu novo “mundo vegetal encantado”.

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