Alentejo desencantado

A leitora (e jornalista) Cátia Jorge recorda as suas férias de Verão em Melides, lamentando que aquele pedaço do litoral alentejano esteja tomado pelo “turismo de ganância”.

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Quando, na minha infância e adolescência, voltava à escola depois das férias de Verão, comentava com os meus amigos que tinha passado os meses quentes em Melides. Uma aldeia pacata, algures no Alentejo, onde o mar tinha mau feitio e raramente dava abébias, mas onde o pôr do Sol pintava o céu com todos os tons de laranja, rosa e amarelo até bem perto das dez da noite. Um Alentejo tórrido de dia, mas fresco à noite, onde, ao lusco-fusco, havia invasões de melgas e mosquitos que nos sugavam o sangue e deixavam na pele bolhas que davam comichão. Um Alentejo onde os dias davam para tudo. Praia pela manhã, churrasco demorado ao almoço seguido de uma cartada em família, leitura sem pressas, sestas à sombra, gelados ao fim da tarde, mergulhos ao pôr do Sol, de vez em quando um bailarico pela noite dentro, e tempo de sobra para conversar. Deve ser por conta deste tempo em demasia que os alentejanos conjugam os verbos no gerúndio. Nada se faz, tudo se vai fazendo.

Melides não existia no mapa de férias dos portugueses. Ou se existia, era para muito poucos. Ninguém queria desperdiçar os seus dias de descanso num sítio onde a única coisa que havia para fazer era descansar. Em Melides não havia discotecas e a vida nocturna era bastante silenciosa. Depois do jantar, a juventude juntava-se no bar da praia e, por vezes, prolongava o convívio à volta de uma fogueira no areal, junto à lagoa.

O pão comprava-se directamente na panificadora de Vale Figueira, os ovos caseiros vinham das galinhas da tia Júlia, os tomates e a alface para a salada saltavam directamente da horta do vizinho para a nossa mesa. O peixe era comprado directamente aos pescadores que chegavam na espuma das ondas acompanhados de uma nuvem de gaivotas.

Longe das descrições que os meus amigos faziam de Tavira, Quarteira, Albufeira ou Monte Gordo, em Melides não se passava nada. Parecia uma terra esquecida no tempo e no espaço. Os meses que ali passava eram como uma espécie de intervalo na vida. Vinha de lá mais escura, geralmente mais gordinha (o que na altura era um bom indicador) e tão feliz. Passava o ano a sonhar com a passagem rápida dos meses para logo, logo, poder voltar a Melides.

A aventura começava na viagem. Deixar para trás o Verão frio e ventoso do Oeste, rumar a Setúbal, aguardar umas boas horas na fila para o ferry boat (na altura era bastante mais barato do que “dar a volta” por Alcácer do Sal), atravessar o Sado na esperança de ver golfinhos e depois atravessar a paisagem mais linda que já vi na vida. Cegonhas a sobrevoarem os arrozais e uma estrada infinita que, depois da Comporta, ficava quase deserta. À chegada ao Pinheiro da Cruz, inventava histórias de prisioneiros fugitivos e sofria a dor das visitas que ansiosamente aguardavam para ver os seus familiares privados de liberdade.

À medida que fui crescendo, a viagem foi-se repetindo dezenas, centenas, milhares de vezes e Melides deixou de ser apenas destino de férias. Hoje, como na semana passada, e como há 15 dias, volto a fazê-la. Mas Melides perdeu o encanto. Aqui já não há paz, nem calma, nem serenidade e, em breve nem o sotaque alentejano se ouvirá por estas bandas. Há, sim, resorts de luxo que não chegam às agências de turismo portuguesas, campos de golfe a perder de vista que sugam a água que começa a faltar nos arrozais e que, em breve, deixará de pingar nas torneiras e a privatização de praias com acesso restrito apenas aos ilustres proprietários que podem pagar milhões para meter os pés na areia.

E assim o litoral alentejano vai perdendo o encanto e assim eu, tal como todos os que guardam memórias das longas férias em Melides e assistem à devastação causada pelo turismo de ganância, vou continuar sofrendo. No gerúndio, porque é um sentimento que não passa.

Cátia Jorge

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