Património em espaço de guerra e de invasão

Em 1954, a Convenção de Haia, Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, considerava os atentados contra o património cultural como atentados contra toda a humanidade.


Pensar o património neste momento de terror que vive a Ucrânia pode parecer quase imoral. Neste momento em que morrem civis, em que crianças, idosos e população vulnerável perde as suas casas ou são obrigados a percorrer enormes distâncias para encontrar um porto mais seguro, neste momento de flagelo humano em que a vida e a morte se separam por ténues fronteiras, pensar o património e a sua segurança parece descabido, insensível, insignificante. Mas não é. Neste momento, não podemos deixar de refletir na importância que a perda e destruição desse património representa para toda a humanidade.

Cada um de nós, cada um dos nossos antepassados, contribui, e contribuiu, para o enriquecimento de testemunhos da presença humana no planeta Terra. Se considerarmos que a humanidade na Terra um dia se extingue, podemos ter a certeza de que o património irá permanecer e testemunhar a nossa presença, as nossas emoções, os nossos sentires, a nossa história. Este facto confere-lhe um valor ainda maior e aumenta a responsabilidade da sua salvaguarda. Os bens culturais são testemunho da nossa identidade, da nossa história mais ou menos recente, permite-nos afirmar a nossa autonomia e a nossa cidadania, unindo sentimentos e emoções de gentes com valores similares. Nesta perspetiva da cultura e do património como algo intrínseco à vida de um povo, garante-se a afirmação política dos países e assume-se o valor imensurável das liberdades políticas. Por outro lado, a aceitação da diversidade cultural e a proteção dos bens patrimoniais garantem-nos o respeito e a promoção do pluralismo cultural e da identidade e instituem-se como um caminho para a paz.

De assinalar que o direito à cultura é um direito da humanidade e o património não é apenas de valor local, regional ou nacional - é também de valor internacional, em particular aquele que está assinalado como tal, ao abrigo da Convenção de Haia ou das classificações de Património da Humanidade. Nestes contextos, a cultura e o património assumem carácter global, internacional e a sua proteção deve garantir a salvaguarda de ataques intencionais dirigidos contra os símbolos das culturas e das identidades.

Em 1954, a Convenção de Haia, Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, considerava os atentados contra o património cultural como atentados contra toda a humanidade. Destruir deliberadamente o património cultural sinalizado em ambiente de conflito é considerado crime internacional. Pela Convenção de Haia, os países obrigam-se a proteger o seu património e a tomar medidas necessárias à sua proteção em caso de conflito armado. E impõe-se aos exércitos o respeito, a par da salvaguarda, do património. Para garantir a sua proteção, há que proceder a uma sinalização de proteção especial internacional que garante ao património, de alto valor cultural, a inviolabilidade. Esta sinalização é essencial para evitar o descontrolo do ataque e o aumento da intensidade do mesmo. Funciona como um regulador de conduta que, em caso de violação, aumenta consideravelmente a intensidade do conflito e o número de participantes. A destruição de património, nessas circunstâncias, efetiva a passagem imediata aos domínios internacionais, que, recorda a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, é considerado crime de guerra e julgado internacionalmente.

Putin terá todo o cuidado em cumprir a Convenção de Haia e garantir que não aumentará a intensidade do conflito. Não é esperado que os ataques da Rússia recaiam sobre o património ucraniano. Assim o esperamos todos, em particular os ucranianos que, apesar do momento de terror que vivem, tentam a todo o custo, juntamente com a UNESCO, proteger bens instituídos como símbolo das suas vidas, da sua cultura e da sua identidade.

Olhar pelo património é importante, pois pode ser um veículo para alargar a paz e evitar a guerra e o conflito. Olhar o património ajuda a entender a diversidade, a identidade e a promover a tolerância entre povos. O que todos desejamos.

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