A guerra de Putin contra a Ucrânia trouxe o passado para o presente, e tornou o futuro muito incerto

Sabemos o que aconteceu depois de 1939 e só podemos esperar que, de alguma forma, uma espécie de paz seja alcançada na Ucrânia. Mas o mundo nunca mais será o mesmo. Já entrámos numa era nova e instável.

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Soldados motociclistas alemães com máscaras de gás, na Áustria, por volta de 1939 Hulton Archive/Getty Images

Habituámo-nos a ver aqueles noticiários no início da Segunda Guerra Mundial. O Blitzkrieg, com tropas alemãs, nos seus veículos blindados e motos, a rugirem pela Polónia; os ataques aéreos a alvos polacos; e as mentiras descaradas dos nazis. Os polacos, garantia Hitler, eram os agressores contra as vítimas alemãs inocentes. A Alemanha estava apenas a defender-se a si própria. Para criar “provas”, os nazis encenaram ataques a alvos alemães, vestindo soldados alemães com uniformes polacos – o caso mais célebre aconteceu numa estação de rádio em Gleiwitz, então uma cidade fronteiriça alemã. Para acrescentar verosimilhança, os alemães mataram prisioneiros do seu campo de concentração de Dachau e deixaram-nos como “prova” do alegado ataque.

Isso foi, ou assim pensávamos, há muito tempo, noutro tipo de mundo. Os horrores da Segunda Guerra Mundial ainda vivem nas nossas memórias, mas há muito tempo que esse mundo devastado foi reconstruído, e muitos de nós, os canadianos certamente, vivemos num mundo onde as grandes guerras de Estado contra Estado pareciam ter-se tornado impossíveis. E tomámos como certo que as nossas instituições internacionais, por muito deterioradas que estejam, permitem aos países resolver as suas diferenças; mais, que existe algo chamado “comunidade internacional” que ainda pode trabalhar em conjunto. A guerra de Vladimir Putin contra a Ucrânia – e não nos enganemos, é dele e de mais ninguém – trouxe de repente o passado para muito próximo de nós e tornou o futuro muito incerto.

Os paralelos com 1939 são desconfortáveis: o ditador possuído pela sua missão, as mentiras descaradas e a pretensão de ser vítima, enquanto os agressores fazem vítimas aqueles que só queriam viver as suas vidas como desejavam. Hitler sonhava com um grande império ariano que se estendia do Atlântico aos Urais, Putin quer a restauração da grande Rússia dos czares e da União Soviética e a unidade mística dos povos eslavos. Sabemos o que aconteceu depois de 1939 e só podemos esperar que, de alguma forma, uma espécie de paz seja alcançada na Ucrânia. Mas o mundo nunca mais será o mesmo. Já entrámos numa era nova e instável.

Os acontecimentos estão a avançar tão rapidamente no terreno na Ucrânia e as imagens do sofrimento do seu povo às mãos da invasão, não provocada, pelas forças do sr. Putin são tão chocantes que é difícil recuar e adivinhar quais serão os efeitos a longo prazo. Países democráticos de todo o mundo uniram-se para impor sanções que realmente prejudicam a Rússia, em vez das sanções largamente simbólicas que aplicaram no passado. Os Estados Unidos estão a seguir uma linha firme, mas ainda há muito a fazer por outros países – nomeadamente o Reino Unido, onde tanta riqueza russa é investida. Será que a aliança militar ocidental encarnada na NATO se vai unir e agir como tal? E quanto ao destino das outras instituições que têm estado na base da ordem internacional desde 1945? As Nações Unidas já perderam muita autoridade e podem ser atingidas mortalmente pela sua impotência face a esta guerra.

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Jaroslaw, Setembro de 1939: Adolf Hitler saúda as tropas alemães durante a ocupação nazi da Polónia Hulton Archive/Getty Images

As normas e convenções são tão importantes nos assuntos internacionais como as instituições, por vezes até mais, e o sr. Putin também as está a espezinhar. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial tem havido um entendimento geral de que as fronteiras alteradas pela força não são reconhecidas pela comunidade internacional. Quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait, em 1991, uma coligação internacional, liderada pelos Estados Unidos, expulsou as suas forças e restabeleceu a ordem. Esse princípio útil foi violado quando Putin ocupou a Crimeia em 2014 e agora a sua invasão da Ucrânia abre ainda mais essa porta. Haverá outros prontos a passar por ela. E a história, muitas vezes associada à composição étnica das populações, tornou-se a principal justificação para reivindicar e ocupar território. Saddam utilizou-a no Kuwait; a China utiliza-a com Taiwan.

O sr. Putin não é sincero sobre muitas coisas – por exemplo, a sua alegação ridícula de que enviou tropas para a Ucrânia para salvar o povo ucraniano do nazismo e do militarismo –, mas ele acredita na história, ou melhor, na sua versão dela. Ao menos isso é algo que tem em comum com outros. Em muitas sociedades em que formas mais tradicionais de autoridade, como a religião, entraram em declínio, a história foi elevada à posição de autoridade imparcial. Quantas vezes ouvimos o conselho para estar no “lado certo da história”, como se houvesse alguma força invisível a fluir através dos assuntos humanos que separará os justos dos pecadores? Podem não saber a opinião do sr. Putin sobre a história, mas alguns dos nossos manifestantes camionistas canadianos mostraram a mesma fé de que a “história” os julgaria como pessoas que fizeram a coisa certa.

Quando olharmos para esta crise, podemos também concluir que deveríamos ter compreendido melhor o domínio que o passado pode ter sobre pensamentos e acções no presente. O sr. Putin – e o mesmo poderá provavelmente ser dito sobre o círculo cada vez mais pequeno que o rodeia – nunca chegou a aceitar o fim da União Soviética em 1991. Ele tornou-se adulto como funcionário do Estado numa superpotência e viveu para se tornar senhor de uma Rússia que era apenas uma potência regional, com uma economia vacilante, uma população em declínio e um nível de vida mais próximo de países do Sul Global do que do Ocidente ou da Ásia. Embora a União Soviética tenha reconhecido a independência da Ucrânia em 1991, pouco antes de se dissolver, o sr. Putin nunca aceitou essa decisão como legítima. Durante demasiado tempo, os líderes ocidentais pensaram que quando o sr. Putin disse que o fim da União Soviética era “a maior catástrofe geopolítica” do século XX era apenas retórica.

Noventa por cento dos ucranianos votaram a favor da independência em 1991, mas para o sr. Putin isso não tem qualquer valor contra uma história que, afirma, uniu os povos russo e ucraniano num só ser indissolúvel desde o século IX. O seu contexto histórico não só é muito mais antigo do que o da maioria dos ocidentais, como é diferente. Acontecimentos que ocorreram há séculos, como a Batalha de Poltava, em 1709, quando os exércitos de Pedro, o Grande derrotaram os suecos para se tornarem a potência dominante na região, ainda são vívidos no seu pensamento. Já se especula que o sr. Putin, que gosta de se comparar ao seu “antecessor” Pedro, o Grande, irá organizar as celebrações da sua vitória, se de facto acontecerem, em Poltava, que fica no centro da Ucrânia. Haverá um novo pedaço de história de que outros vão tirar partido no futuro, seja como incentivo ou como aviso.

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