Sorte de bombeiro

“Vida de bombeiro é assim, menina! Acontece sempre alguma coisa para complicar e não vale a pena ficar em stress por causa disso. Isto vai ser como tiver que ser”. A crónica de uma viagem (com avarias) à Ucrânia com bombeiros portugueses.


Disseram-me há algumas horas que viagem de bombeiro inclui sempre imprevistos. “Nunca corre tudo como esperado”, explicaram. E o facto é que, quando a caravana de bombeiros portugueses a caminho da Ucrânia ainda se encontrava a uns 1200 quilómetros do seu destino, já uma série de azares ficava na história da viagem. A missão da Liga Portuguesa de Bombeiros era, de início, relativamente simples: juntar seis camiões e dois carros para percorrerem desde Mafra uns 3400 quilómetros no mais curto espaço de tempo possível, de forma a fazerem chegar às corporações ucranianas toneladas de material decisivo para a sua atuação no conflito com a Rússia.

Ambulâncias, capacetes, fatos de proteção, luvas e cogulas, medicamentos, material de primeiros-socorros e outros artigos básicos já rodavam por estrada desde quinta-feira e na fila seguia ainda um autocarro preparado para, no regresso, trazer dezenas de refugiados para Portugal, ao encontro de familiares já sinalizados. Era suposto a ida ser algo entediante, mas rápida; acreditava-se que as paragens iam ser mínimas e seguras; previa-se que tudo fosse só estrada e “peanuts” até à fronteira polaco-ucraniana. Só que não!

Mesmo não entrando em detalhes sobre o assalto a um camião dos Bombeiros de Carnaxide para roubo de um computador ao terceiro dia de viagem, já as jornadas anteriores ficaram marcadas por azares chatos. O primeiro deu-se pouco depois da entrada em França, numa terrinha qualquer cujo nome incluía “Espérance”. Estavam uns 20 bombeiros a esticar as pernas no ar húmido da manhã quando, por baixo de um TIR da corporação de Macedo de Cavaleiros, se nota o brilho de um líquido viscoso e esverdeado. Para quem não percebe nada de mecânica automóvel, aquela mancha até tinha um aspeto engraçado, mas a realidade é que se tratava de anticongelante e, depois de alguns talentos espreitarem a máquina, a conclusão foi que o camião ficaria inoperacional. Assim foi.

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A equipa que o conduzia disse adeus aos colegas, ficou para trás e rumou a uma oficina próxima para uma reparação que os afastaria 24 horas do resto do grupo. Prejuízo: não muito, considerando que esses dois operacionais foram acolhidos durante a noite pelos bombeiros de Creuse. Efeito no moral das tropas: ténue, dado o consolo de saber-se que o problema era reparável.

Estrago pior veio horas depois, ainda em França, já na zona de Dole. O autocarro que transportava centenas de doses de “ração” para os bombeiros, assim como mantas, almofadas e sacos-cama para os refugiados a transportar no regresso, emitiu subitamente um som estranho e o motorista parou-lhe a marcha. Ao sair para verificar o cárter, descobre novos brilhos no chão, bem perceptíveis mesmo no breu da A36. A expressão facial dos dois condutores de serviço não enganou ninguém: “Ou rebentou a bomba de óleo ou foi o motor que se partiu”. Num caso ou no outro, a viagem parecia acabar ali e o desânimo dava dó. Tantos quilómetros de corpo moído, tantas horas roubadas ao sono, para nem se chegar ao destino?

Seguiram-se telefonemas para a assistência em viagem e o número de emergência francês, foi pedida outra vez ajuda à corporação de Creuse para agilizar o serviço de reboque e, ainda antes de se saber se o problema tinha ou não solução, fomos a um quartel próximo perguntar se guardariam o veículo avariado até que o porta-ambulância dos bombeiros voltasse vazio da Ucrânia e o carregasse em peso até Portugal.

A viajar no autocarro empanado, a jornalista de serviço – yours truly – começava a ver a vida andar para trás. Dada a assomos de ansiedade e tiques obsessivo-compulsivos, sentia assomar-lhe a frustração de morrer na praia! Se o seguro não garantir veículo de substituição que possa continuar rumo à Ucrânia, volto para trás ou faço o resto da viagem fechada na galera de um camião, à socapa, como num filme sobre tráfico de pessoas? Peço boleia num dos carros do comando para continuar a seguir os acontecimentos e magoo os seis bombeiros que me aturaram até aqui, ou poupo-lhes os sentimentos e não me perdoo a mim por perder o comboio?

Estava eu a gerir estas dúvidas profundíssimas quando noto como as gargalhadas se começam a amontoar junto à cabine do motorista, mastigadas com rebuçados e bolachas de água e sal. Como é que esta gente está tão calma, até bem-disposta? Como é que não lhes dá para chorar imaginando que podem ficar retidos numa oficina ou num quartel estranho sem completarem a missão para a qual se voluntariaram? E se o autocarro não tiver emenda e afinal não puder ir buscar os ucranianos que já estão à espera dele? Como evitamos a desilusão dessa gente já tão sofrida?

A resposta das bombeiras chega num tom paternalista, mas friendly: “És mesmo tenrinha…!”. Mantendo o humor e de sobrolho meio erguido, lá me explicam, como numa aula do 1.º Ciclo, de onde lhes vem aquele espírito de resignação. “Vida de bombeiro é assim, menina! Acontece sempre alguma coisa para complicar e não vale a pena ficar em stress por causa disso. Isto vai ser como tiver que ser”.

Frontal e direta, aquela era a versão tuga do lema americano dos Alcoólicos Anónimos: “Deus, dá-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar aquelas que posso alterar e a sabedoria para distinguir a diferença”. E as miúdas sabiam mesmo do que falavam, porque ainda a concessionária da autoestrada estava a fechar a via obstruída pelo bus, dispondo pelo asfalto uma impressionante carga de sinalização refletora e luminosa alertando para o veículo avariado, e já um dos comandantes da missão reorganizara a estratégia e fazia novo briefing a seis pessoas.

“Amanhã saem por avião do Porto dois motoristas que vêm cá só para conduzir o autocarro de substituição que vamos alugar em França. Quatro de vocês mudam-se com a carga toda do autocarro avariado para o novo e, quando estiver tudo pronto, vão nele ter com o resto da comitiva, para trazer os refugiados. Os outros dois bombeiros ficam com o bus avariado”, informou. “Se o autocarro não tiver reparação, vocês esperam por nós até passarmos cá novamente, no regresso da Ucrânia, e vos rebocarmos para Portugal. Se ele tiver conserto, vocês pegam nele, voltam à estrada, juntam-se a nós onde estivermos e assim trazem mais 50 refugiados do que tínhamos previsto”.

Prejuízo: mais uns milhares de euros a acrescentar a uma despesa que já ia em 40.000. Efeito no moral das tropas: aceitação. O que não se pode mudar decidido está. E é apenas a possibilidade de o autocarro poder ser reparado que atenua nos dois motoristas a tristeza – subtil e conformada, mas ainda assim palpável – da missão ingrata que é ficar para trás. Da missão altruísta que é aguardar em prontidão sem saber se se chega a ir a combate.

Todos sabemos dos incêndios, da temperatura arrasadora dos fogos, da respiração difícil sob nuvens de fogo espesso e pesados fatos ignífugos. Todos sabemos da rapidez no socorro aos acidentes na estrada, da resistência física e emocional a corpos desfeitos, a contacto com carne, sangue e almas que partem. Mas o que poucas vezes temos oportunidade de ver é este trabalho de bastidores, de logística interna e detalhada, de contabilidade ao minuto, de gestão de crise em andamento, de aceitação sem pânico, dedicação sem exigências, disponibilidade sem fama. Glória à Ucrânia? Claro que sim. Mas honra também ao caráter inabalável dos bombeiros portugueses.


A autora escreve segundo o novo acordo ortografico

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