Guerra e paz

No início, o pensamento que a guerra talvez tivesse feito marcha atrás era o primeiro do dia. Ainda enremelados, os olhos percorriam as notícias à procura de um sinal de que o exército russo interrompera o cortejo de armas e se não recolhido a casa, pelo menos suspendido o avanço das tropas. Tal esperança foi gradualmente esmorecendo. A guerra teimava em fazer o seu caminho, deixando um rasto de desolação e ódio. Quando no Ocidente se apelou ao boicote à vodka russa, era há muito claro que Putin não se contentaria com Donetsk e Luhansk.

Se longe vão os tempos das campanhas napoleónicas — anacronicamente ressuscitadas por Vladimir Putin — menos longe irão os tempos vividos por Isaac Jacob Blumenfeld, personagem criada pelo judeu búlgaro Angel Wagenstein, cuja vida “durante duas guerras, em três campos de concentração e cinco pátrias”, à semelhança do relato inacabado de Jaroslav Hašek em O Bom Soldado Švejk (Tinta-da-China, 2012), nos é vivamente contada em O Pentateuco de Isaac, livro desgraçadamente nunca traduzido, mas de que existem versões em línguas mais acessíveis do que o búlgaro. Isaac, nascido na pequena vila de Kolodetz, perto de Lvov, acumulará várias nacionalidades ao longo da vida: de cidadão do império Austro-Húngaro passará a polaco, depois a cidadão da URSS; ser-lhe-á imposta a cidadania alemã durante o período nazi, para se tornar de novo soviético sob Estaline. Hoje seria ucraniano.

Para os portugueses, cujo jardim europeu à beira-mar plantado se mantém intacto nas suas fronteiras pelo menos desde que, em 1267, o Tratado de Badajoz estabeleceu de uma vez por todas a quem pertencia o Algarve, os câmbios de nacionalidade de Blumenfeld poderão parecer algo bizarros, tanto mais que o conceito de Estado-Nação se tornou banal e, julgávamos nós, perfeitamente consolidado (excepto talvez em África, mas o que interessam os conflitos em África e quanto a Taiwan o futuro o dirá…).

Para justificar a invasão, Putin falou do alargamento da NATO. Num artigo publicado no New York Times a 21 de Fevereiro último e intitulado “Esta é a guerra de Putin. Mas a América e a Nato não são espectadores inocentes”, o jornalista Thomas L. Friedman, insuspeito de qualquer simpatia pela causa russa, cita a conversa que teve em 1998 com o diplomata e historiador George Kennan (falecido com 101 anos em 2005 e um dos arquitectos da “política de contenção da URSS” posta em prática pelos EUA durante a presidência de Harry Truman), logo após o Senado ter aprovado o alargamento.

O velho Kennan não podia ter sido mais claro: “Acho que é o início de uma nova Guerra Fria. Os russos irão reagir gradualmente de forma bastante negativa e isso afectará as suas políticas. Penso que é um erro trágico. Não havia razão nenhuma para o fazer. Ninguém estava a ameaçar ninguém. (…) [A expansão da Nato] foi apenas uma acção irresponsável de um Senado que na verdade não se interessa por política externa. (…) Fiquei particularmente incomodado com as referências à Rússia como um país que morre de vontade de atacar a Europa Ocidental. (…) As nossas diferenças durante a Guerra Fria eram com o regime comunista soviético. Estamos agora a virar as costas às mesmas pessoas que fizeram a maior revolução sem derramamento de sangue da história (…). Além de que a democracia na Rússia está tão ou mais avançada do que a de qualquer um desses países com que acabamos de assinar para se defenderem [dela]. É claro que vai haver uma má reacção da Rússia, e nessa altura [os defensores da expansão da Nato] dirão que sempre vos avisámos de que os russos são assim — mas não é verdade”.

De 1998 a 2021 muita água correu debaixo das pontes, incluindo a que levou Putin ao poder em 1999, com as suas formas peculiares de aniquilar adversários que incluem, como é sabido, o recurso a venenos e outros meios dissuasores similares que, como as campanhas napoleónicas, também supúnhamos em desuso. Dito isto, e reportando-me ainda às palavras de Kennan, percebe-se de facto mal a diferença, a não ser de grau, entre Putin e Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria, país da União Europeia que, apesar de pertencer à Nato desde 1999, acaba de interditar o envio de armas para a Ucrânia a partir do seu território. E também nos ocorre perguntar que cabeça será a de Kiril Petkov, primeiro-ministro da Bulgária, outro Estado com assento no Parlamento Europeu e na Aliança Atlântica para, ao referir-se aos refugiados ucranianos, ter usado (sic) os seguintes termos: “Estas pessoas são inteligentes, são pessoas educadas… Esta não é como a onda de refugiados a que estávamos habituados, pessoas de quem não tínhamos a certeza sobre a sua identidade, com passado obscuro, que podiam ter sido terroristas…”. Sírios? Apetece perguntar.

Os nacionalismos, o lado oculto da lua dos Estados-Nação, diz-nos a história, são a mãe e o pai de muitas guerras. E para nos usar mais uma vez como amostra, enquanto nós, portugueses, decerto responderíamos com um rosário de bocejos se algum adiantado mental nos propusesse pegar em armas e toca a recuperar Olivença!, já o nacionalismo exacerbado de Putin, empenhado em ressuscitar a Mãe Rússia, conseguiu ir enrijecendo (quanto e até quando?) num país que ainda há poucas décadas era a outra superpotência — e no mundo só havia duas. Afinal, o revanchismo (de revanche: vingança), movimento político associado à França quando esta, em 1871, derrotada pelos exércitos de Bismarck, perde as regiões da Alsácia e da Lorena e jura ufanisticamente vingar-se e recuperá-las, não tem exclusivo de bandeira.

Mas a narrativa grandiloquente de Putin, indo requisitar à história alibi para a invasão da Ucrânia, mais do que obsoleta — já que recuando no tempo, não só o Algarve pertenceria ao Al-Andaluz (como queriam os alucinados do ISIS), mas também, a crer no famoso assiriólogo Samuel Noah Kramer (por acaso, nascido em Kiev em 1897), nos deveríamos estar todos a digladiar na Suméria — pode virar-se contra ele. Afinal, se o reino de Kiev precede largamente a formação da Rússia, maior razão haveria para os ucranianos marcharem sobre Moscovo do que o inverso. Geografia, história e ficções à parte, cabe dizer que não é defensável no século XXI invadir-se um país e destruí-lo porque se partilha com ele antepassados viking.

Assim, aqui nos encontramos: face a um conflito cujas proporções são ainda desconhecidas, de novo a contar cadáveres. Entregues ao revanchismo russo que não só é ufanista como possuí armas nucleares, e sem que ninguém arrisque qual a atitude de um Putin desesperado, a reacção tem sido tentar atingir os cofres da economia. Houve medidas sem precedentes — o que nos deixa a pensar se outras aproximadas não teriam evitado outras tantas desgraças e sido eficazes no combate a outras tantas ditaduras, mas o mundo é o que é. E sendo o mundo o que é, está a guerra entregue a mediadores suspeitosos: à China que, na sua retórica floreada, veio reafirmar “a sua amizade eterna com a Rússia” e acusar a Nato de querer reeditar a Guerra Fria, mas também à Turquia de Erdogan.

Entretanto, a contestação generalizada à invasão putinista vai-se alargando, nem sempre sensatamente, ao mundo das artes. O cancelamento de vários representantes da cultura russa atingiu um patamar absurdo quando a universidade italiana de Milão-Biccoca se propôs anular um seminário sobre Dostoiévski “para evitar problemas neste momento de grande tensão”. Ironicamente, acabaria por ser graças à grande tensão gerada por tal sconclusionato que Dostoiévski se viu readmitido. Quantos ucranianos teriam sido salvos dos bombardeamentos pela censura ao autor de Crime e Castigo? Ficámos sem saber.

O escritor Ian McEwan relembrou há dias (The Guardian, 5/3) que qualquer mediação para pôr fim a uma guerra, é sempre antecipada por posições à partida irreconciliáveis. Terminava fazendo um apelo para que tudo, todos os recursos, toda a nossa compaixão fossem investidos em negociar um cessar-fogo: “Without the attempt we will be condemned to watch mass death up close — and we will never forgive ourselves”.

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