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Na guerra, a Internet mantém-se neutra
Uma newsletter de João Pedro Pereira sobre inovação, tecnologia e o futuro.
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É incontornável que esta newsletter regresse à Ucrânia. O conflito, como procurámos explicar aqui na semana passada, é a primeira guerra hiperconectada. Recentemente, tivemos mais um exemplo: a batalha na central de Zaporizhzhia, a maior central nuclear europeia, pôde ser seguida em directo no YouTube, com direito a comentários, como se de uma partida desportiva se tratasse.
Também sabemos – embora haja pouca informação pública – que há um ciberconflito em curso, no qual os EUA e os países europeus estão a apoiar a Ucrânia, embora pretendam garantir, também aqui, que não vão ao ponto de poderem ser considerados participantes na guerra. Uma das linhas traçadas, revela o New York Times, é a de fazer apenas disrupções temporárias e não permanentes nos sistemas russos; uma nuance peculiar sobre as leis da guerra, porque, quando uma destas disrupção acontece, os russos não sabem se é temporária ou não – e também não é garantido que Putin esteja a tomar nota. Para além disto, a Casa Branca reconheceu há dias que está a partilhar informação em tempo real com as forças ucranianas e o Presidente Zelenskii tem consigo equipamento de comunicações encriptadas fornecido pelos americanos.
No meio dos horrores da guerra e da profusão de estrategas militares nas redes sociais, houve um episódio que mereceu pouca atenção: o ICANN, a entidade americana sem fins lucrativos que gere uma componente fundamental da Internet (lá iremos), recusou-se a aceder a um pedido do ministro ucraniano da transição digital, Mikhailo Fedorov (o mesmo que pediu ajuda a Elon Musk), para tomar medidas que tornariam mais difícil o uso da Internet na Rússia. O ICANN fê-lo com um argumento de princípio e com um argumento técnico.
O episódio é relevante porque é exemplo de como a chamada governação da Internet – um tema burocrático e desconhecido da maioria das pessoas – funciona bem; e porque ilustra os riscos que seria passar esta responsabilidade para organização intergovernamentais, como há uns anos esteve em cima da mesa.
Em traços muito largos, o ICANN é responsável por manter a funcionar uma parte da Internet que faz a correspondência entre endereços – como publico.pt ou kremlin.ru – e os servidores onde os sites ou emails daqueles endereços estão alojados; isto é uma componente fundamental da infraestrutura global.
Com sede nos EUA, o ICANN integra, para lá de cientistas e técnicos, representantes da generalidade dos países e funciona numa lógica de geração de consensos. Até 2016, por razões históricas, estava formalmente na dependência do Departamento do Comércio dos EUA. Nessa altura, alguns países, entre os quais o Brasil e a China, defendiam que as responsabilidades do ICANN ficassem sob a alçada da ONU. Os EUA opuseram-se e uma das condições para abdicarem da ligação ao ICANN era que este não tivesse ligação a qualquer entidade que pudesse ser controlada por governos.
Entre outras medidas, o ministro Fedorov pediu ao ICANN que retirasse à Rússia o controlo dos seus domínios de topo – a parte final de um endereço de Internet, como o .ru. A resposta foi um empático, mas enfático, "não".
Na carta que escreveu a Fedorov, o presidente do ICANN, Göran Marby (que é sueco-americano) lembrou que esta não é uma entidade com poder para impor sanções, que um dos objectivos é garantir "que o funcionamento da Internet não é politizado" e que a missão é "assegurar que a Internet funciona", não o contrário. Foi o argumento de princípio.
Depois, Marby observou que a Internet é um sistema descentralizado que não é controlado por uma única entidade, e que alguns dos pedidos do ministro ucraniano nem sequer eram coisas que o ICANN fosse capaz de fazer.
Por fim, o presidente do ICANN apontou que dificultar o acesso à Internet na Rússia traria mais dificuldades aos civis do que ao Governo ou aos militares, dando ainda a entender que as medidas provavelmente beneficiariam mais a própria Rússia do que a Ucrânia ou os seus aliados.
Marby tem razão: uma Internet mais restrita (que não é inconcebível que fosse aprovada por uma entidade como, por exemplo, a ONU) seria favorável a Putin. Não foi à toa que Moscovo adoptou medidas rígidas para controlar a informação que circula, incluindo criminalizar o uso da palavra guerra para definir o conflito, e bloquear o acesso a várias fontes de informação online, entre as quais redes sociais. Este impressionante artigo do New York Times indica que os esforços de propaganda de Moscovo têm alguma eficácia: há na Rússia familiares de ucranianos que não acreditam que esteja uma guerra em curso – mesmo quando estão ao telefone com filhos que lhes descrevem como as bombas chovem sobre as ruas.
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