Rússia e Ucrânia chegam a acordo para “criar corredores humanitários”

Medida pode ser usada pelos russos para reabastecer e reagrupar, avisam peritos. Anúncio surge quando as forças russas reforçam as suas posições no Sul da Ucrânia. “O pior está para vir”, avisa Macron depois de ouvir Putin.

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Imagem da segunda ronda de negociações, a decorrerem na Bielorrússia MAXIM GUCHEK/EPA

A diferença de tom com que ucranianos e russos partilharam a novidade foi notória. “Há apenas uma solução para a organização de corredores humanitários”, escreveu no Twitter o conselheiro presidencial ucraniano Mykhailo Podolyak, depois de sublinhar que “infelizmente, os resultados de que a Ucrânia precisa não foram ainda obtidos” na segunda ronda de negociações entre Kiev e Moscovo, que decorreu esta quinta-feira na Bielorrússia. Já o Kremlin descreveu os acordos humanitários como “muito importantes”.

Antes, o chefe da delegação da Rússia que esteve nas negociações dissera que os ministérios da Defesa dos dois países chegaram a acordo para “criar corredores humanitários para civis e para um possível cessar-fogo temporário em áreas onde acontecem evacuações”. Segundo disse Vladimir Medinsky aos media russos, esta medida visa “resgatar civis que se encontrem numa zona de confrontos militares”. A ideia seria também usar os mesmos corredores em sentido contrário, para fazer chegar comida e medicamentos às cidades onde já faltam bens de primeira necessidade, principalmente no Sul e no Leste.

“A Rússia apela aos civis que se encontrem nestas situações, caso as acções militares continuem, para usarem estes corredores humanitários”, afirmou Medinsky. Segundo outro negociador russo, Leonid Slutsky, estes acordos serão “implementados num futuro próximo”.

A única boa notícia do dia não foi recebida com festejos na Ucrânia, onde as forças russas ganham terreno no Sul e surgem cada vez mais imagens de destruição e de vítimas. Depois de uma semana em que o exército russo aparentou problemas de comunicações e organização, alguns peritos avisam que a criação de “corredores humanitários” acompanhados da cessação de combates podem ser uma oportunidade para a Rússia reabastecer e reagrupar.

“À primeira vista são boas notícias”, escreve Emma Beals, do European Institute of Peace, notando logo em seguida que a “experiência da Síria” dá pistas dos benefícios possíveis para quem ataca. “A Rússia vai provavelmente usar o cessar-fogo de forma estratégica”, explica no Twitter. “Se estão atolados e com problemas em reabastecer” esse pode ser o motivo para o acordo, explica, avisando ainda que é provável que Moscovo “concorde em princípio” com determinadas rotas e “depois proponha corredores não seguros e sem viabilidade”, dificultando os movimentos de ajuda ou distribuição de bens.

Beals lembrou ainda a possibilidade de “ataques a colunas de ajuda, civis em fuga e infra-estruturas”, algo que aconteceu várias vezes na Síria, defendendo que seria importante que as duas partes se entendessem para colocar no terreno “monitores internacionais ou imparciais mobilizados para facilitar a passagem de bens e civis”.

Os próximos dias trarão pormenores e permitirão perceber se estes corredores servirão mesmo para ajudar os civis ucranianos. Certo é que quanto mais tempo passa serão mais os que precisam dessa ajuda. De acordo com as Nações Unidas, pelo menos 249 civis ucranianos foram mortos no conflito e 553 ficaram feridos – o Alto Comissariado para os Direitos Humanos admite que os números reais deverão ser bastante superiores.

No dia em que as autoridades locais de Kherson, a cidade do Sul localizada na foz do rio Dnieper, admitiram a queda desta capital de província, as forças russas apertaram o cerco a Mariupol (mais a leste), ao mesmo tempo que avançaram para Mykolaiv, em direcção a Odessa (a ocidente) e à região separatista da Transnístria (Moldávia). O objectivo é unir esta região às autoproclamadas repúblicas do Donbass (passando pela Crimeia) e fechar, ao mesmo tempo, o acesso ucraniano ao mar Negro.

Com a enorme coluna militar a caminho de Kiev sem avançar há quase três dias, alguns analistas interrogam-se se a capital ucraniana será mesmo um objectivo estratégico do Kremlin ou não passará de um “engodo” enquanto as forças russas se apoderam do Sul e do Leste. Mas a maioria considera que Moscovo tem os dois objectivos e acredita que a falta de avanços da coluna que se espalha por dezenas de quilómetros se explica com erros de planeamento e problemas para abastecer.

Numa intervenção destinada a dizer aos russos que tudo está a correr de feição, Vladimir Putin assegurou que os avanços no terreno acontecem “de acordo com o plano”. O Presidente russo reforçou ainda a narrativa da “boa guerra” para defender a Rússia e derrotar os “neonazis” de Kiev. No discurso, no arranque de uma reunião do Conselho de Segurança, Putin afirmou ainda que “nunca” abandonará a sua “convicção de que os russos e os ucranianos são um só povo”.

Depois de uma hora e meia ao telefone com Putin, o Presidente Emanuel Macron ficou convencido “que o pior está para vir”, disse aos jornalistas em Paris um conselheiro do chefe de Estado francês. “Não houve nada naquilo que o Presidente Putin disse que nos tenha dado garantias”, lamentou ainda, dando conta que o chefe de Estado russo insistiu que pretende “desmilitarizar” e “desnazificar” a Ucrânia e que essas exigências terão de fazer parte de qualquer acordo com os ucranianos para cessar as hostilidades.

"Grande tragédia"

“A nossa análise das operações militares é que as ambições da Rússia são as de assumir o controlo de toda a Ucrânia”, disse o mesmo conselheiro. Segundo o representante francês, Macron disse, ainda assim, a Putin que este “está a mentir a si próprio” quando pensa que a invasão da Ucrânia é a melhor estratégia para conseguir os seus objectivos e avisou-o de que a ofensiva “vai custar muito caro ao seu país”.

Um dia depois de Moscovo ter referido pela primeira vez números de baixas entre os seus soldados, falando em 498 mortos, o porta-voz do Kremlin Dmitri Peskov expressou “grande tristeza” por estas mortes e apresentou “condolências aos que perderam os seus maridos e filhos”. “Claro que isto é uma grande tragédia para todos nós”, afirmou Peskov, sublinhando que “os actos de coragem” destes militares ficarão na história. Declarações raras num país onde as famílias de mortos em combate estão proibidas de falar sobre as suas perdas.

Referindo-se ainda aos rumores de que Putin estaria a preparar-se para declarar a lei marcial ou impedir os homens em idade militar de sair do país, Peskov garantiu que são apenas “mentiras que circulam”. Ao mesmo tempo, o Ministério do Interior avisou que serão introduzidas “medidas extraordinárias para garantir a lei e ordem” face a protestos não autorizados contra a guerra. Segundo a OVD-info, uma organização não-governamental que monitoriza a actuação policial, mais de 7500 pessoas foram detidas em manifestações a condenar a ofensiva na última semana.

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