Suspensão da RT e Sputnik na União Europeia: caixa de Pandora ou medida tardia?

A União Europeia suspendeu o que considera “armas de propaganda” do Kremlin. O PÚBLICO ouviu dois especialistas com pontos de vista opostos sobre a decisão.

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As televisões da RT e a agência Sputnik, do Kremlin, foram suspensos do espaço europeu DADO RUVIC/Reuters

A União Europeia anunciou esta quarta-feira a suspensão do espaço europeu das emissões dos órgãos de comunicação do Kremlin RT (Russia Today) e a Sputnik por espalharem “propaganda e desinformação”.

“Nesta altura de guerra, as palavras têm importância. Estamos a ver uma enorme quantidade de propaganda e desinformação sobre este ataque a um país livre e independente”, disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, explicando a decisão aplicada às várias entidades da RT (RT English, RT UK, RT DE para língua alemã, RT France e RT en Español) e à agência Sputnik. “Não vamos permitir que os apologistas do Kremlin despejem as suas mentiras tóxicas a justificar a guerra de Putin, ou a plantar divisões na nossa União.”

Especialistas em media vêem a medida de modos muito diferentes. Gustavo Cardoso, investigador do ISCTE, diz que a União Europeia está a “abrir uma caixa de Pandora”. Para Susanne Spahn, é uma medida que já vem tarde.

“A primeira baixa na guerra é a verdade, e a segunda é o bom senso”, disse ao PÚBLICO, por telefone, Gustavo Cardoso. “As decisões que estamos a tomar vão marcar o futuro. O que estamos a decidir fazer relativamente à Rússia terá de ser aplicado nas próximas guerras”, defende. “A questão é o boomerang que isso pode ter para nós. Qual é o critério que podemos ter para cortar outras emissões, nacionais ou outras, quando considerarmos que têm desinformação? Para as democracias é uma questão mesmo complicada.”

Gustavo Cardoso lembra um estudo do Media Lab que avaliou a Sputnik em português (a RT não tem versão em português), no início da pandemia, e concluiu que não tinha desinformação.

Já na Alemanha o cenário é radicalmente diferente: foi aliás durante a pandemia que o Gabinete de Protecção da Constituição (os serviços de informação interna responsáveis pela prevenção de ameaças ao sistema democrático) assinalou a RT DE como perigosa, por negar a existência da pandemia e dizer que as medidas de prevenção eram inúteis, lembra Susanne Spahn.

A investigadora lamenta que o seu aviso não tenha tido qualquer seguimento, provavelmente por já haver várias questões nas relações entre a Rússia e a Alemanha, como Alexei Navalny (o opositor envenenado com Novichok na Rússia, foi tratado no Hospital Charité em Berlim) e o assassínio de um antigo militante tchetcheno em Berlim por um agente russo). “Espero que esta ameaça comece a ser levada mais a sério a partir de agora.”

Gustavo Cardoso nota a diferença do conteúdo conforme as línguas: em Portugal a desinformação da Sputnik se existe é residual, e por isso o investigador questiona se vale a pena banir quando os canais têm uma audiência irrelevante. “Banir seria importante se tivesse implicação directa no equilíbrio das democracias”, diz, o que não é o caso em Portugal.

O objecto de estudo de Susanne Spahn tem sido precisamente a interferência da RT DE e outros meios do Kremlin na democracia na Alemanha: o seu estudo mais recente diz respeito às eleições legislativas na Alemanha, e conclui que o objectivo principal foi impedir que houvesse uma chanceler dos Verdes (a candidata era a actual ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock).

No ano passado, um relatório da task force da União Europeia de luta contra a desinformação mostrava que a Alemanha é claramente o alvo da maior parte da desinformação russa, com mais de 700 casos desde 2015, muitos mais do que outros países (França foi alvo de cerca de 300 campanhas, Itália 170 e Espanha 40). Nas redes sociais, os media e canais russos têm grandes audiências: a RT DE tem mais seguidores no Facebook do que a Deutsche Welle, e tem mais interacções do que o Bild, o diário de maior circulação em toda a Europa, dizia recentemente o Politico. Todos os canais juntos têm mais de 1,2 milhões de utilizadores.

“Agora, durante a guerra na Ucrânia, a desinformação e falsificação estão a aumentar muito, há algumas narrativas falsas principais: a guerra é tratada como uma operação especial militar, o Estado russo está a mandar forças de manutenção de paz, não chamam a guerra pelo nome, põem as coisas ao contrário: o agressor não é a Rússia, é a Ucrânia, o Ocidente é culpado pela guerra, o alargamento da NATO, tentam distrair da realidade e do papel da Rússia nesta guerra. São falsificações completas que têm de se parar, porque tentam que as pessoas na Alemanha se sintam culpadas pela guerra, a culpa histórica da II Guerra, tentam distrair assim”, descreve Spahn.

A argumentação da Comissão Europeia é que se trata de armas de propaganda e não de meios de comunicação legítimos. A Sputnik foi criada por decreto presidencial, a RT diz de si mesma que é um instrumento de informação do Kremlin para contrariar a narrativa ocidental. Não há independência editorial, mas sim controlo directo do Kremlin, e é por isso que a Comissão não os considera meios de comunicação social legítimos. A própria directora da RT em Moscovo, Margarita Simonyan, já descreveu o canal como “uma arma como outra qualquer”.

Para Spahn, o problema agora é a concretização da decisão. “Von der Leyen fala em Bruxelas, mas na Alemanha é outra realidade.” A RT DE foi proibida na Alemanha, por decisão do regulador de comunicação, por ter apenas uma licença sérvia. Mas o canal não acatou a decisão do regulador e continuou a emitir. A decisão em relação à RT DE levou, no entanto, a Rússia a expulsar os jornalistas da emissora alemã Deutsche Welle de Moscovo e a encerrar a sua delegação.

O potencial de retaliação é mencionado por Gustavo Cardoso: a suspensão dos canais do Kremlin “cria a desculpa imediata para que o outro lado corte todo o tipo de informação”. No ano passado, a Rússia já tinha expulsado dois jornalistas ocidentais incluindo uma correspondente da emissora britânica BBC, recusando renovar a sua acreditação, e um holandês do Volkskrant, por “irregularidades administrativas”.

Vários reguladores europeus tiveram já acção, a nível individual, sobre os canais do Kremlin envolvidos em desinformação: Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, lembra a Comissão Europeia.

Além das autoridades, algumas empresas decidiram também excluir estes media: a Google vai deixar de disponibilizar as aplicações dos canais nas suas lojas de aplicações na Europa, e a RT e Sputnik já não aparecem no YouTube nem no Google News. A Apple anunciou que deixará de oferecer os canais na sua AppStore fora da Rússia.

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