Apelos ao boicote e cancelamentos afectam as exportações culturais russas

À decisão da Eurovisão e à pressão sobre o maestro Valery Gergiev, juntam-se agora apelos ao boicote do cinema russo e de alguns canais de televisão do país. E já ficou sem efeito a temporada de Verão do Ballet Bolshoi na Royal Opera House, em Londres.

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Os presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin no Teatro Bolshoi em 2019 Agências

A Academia Ucraniana de Cinema apelou no sábado ao boicote internacional da indústria cinematográfica russa, acusada de “espalhar propaganda e factos distorcidos”. O Ministério da Cultura e da Informação do país que na quinta-feira foi invadido pela Rússia está também a pedir aos operadores de televisão de todo o mundo e ao YouTube que parem de difundir as emissões de alguns canais russos nas suas plataformas. E já são três as companhias de bailado russas, incluindo o importante Ballet Bolshoi, que viram as suas digressões no Reino Unido canceladas, numa reacção de boicote cultural que começa a ganhar tracção e que levou também o director da companhia de bailado do Teatro Stanislavski, em Moscovo, o francês Laurent Hilaire, a demitir-se do seu posto.

A ex-estrela da Ópera de Paris anunciou este domingo a sua decisão de abandonar o Stanislavski e a capital russa devido “à situação geo-política”. “Lamento esta decisão, trabalhei em harmonia com as equipas do teatro, parto com tristeza, mas o contexto não me permite continuar a trabalhar serenamente”, disse à AFP. Laurent Hilaire fora nomeado há cinco anos para encabeçar aquela que é a terceira maior companhia de bailado russa a seguir ao Ballet Bolshoi e ao Mariinsky, de São Petersburgo, recorda o Le Figaro.

Numa petição online que somava cerca de 1500 assinaturas à hora de publicação deste artigo, a Academia Ucraniana de Cinema pede por sua vez às instituições e aos profissionais do sector que “boicotem a cinematografia russa”. Os festivais de cinema são incitados a excluir filmes russos ou co-produzidos com a Rússia nos seus programas, produtores e distribuidores são visados no mesmo sentido: “Cessem qualquer negócio com entidades da Federação Russa e não transfiram direitos de propriedade intelectual [para a Rússia]. Lembrem-se que quem usar os vossos filmes paga impostos destinados ao orçamento russo, que financia o Exército que violou as fronteiras de um Estado independente e que compra mísseis para bombardear a população civil da Europa.”

A academia pede ainda ao Conselho da Europa que exclua a Rússia do fundo de apoio à produção e co-produção Eurimages, cancele quaisquer acordos de co-produção que incluam o país e expulse a Federação Russa da Convenção de Co-Produção Cinematográfica. E reivindica também que os profissionais que apoiam “a agressão contra a Ucrânia” não sejam admitidos nas associações europeias de cinema e de audiovisual, apelando igualmente a que o Festival Internacional de Cinema de Moscovo não seja reconhecido pela Federação Internacional das Associações de Produtores Cinematográficos.

Na mesma linha, o Ministério da Cultura e da Informação da Ucrânia foi claro num comunicado enviado em conjunto com os grupos de media ucranianos para os operadores de televisão de todo o mundo: “Desliguem os canais de notícias russos”. Dada a situação de guerra e perante a “poderosa máquina de propaganda russa” que “espalha fake news”, desde sábado todos os canais dos grupos ucranianos 1+1 media, StarLightMedia, Media Group Ukraine e Inter Media Group estão a emitir em conjunto sob o nome de United News e cada organização fornecerá, à vez, informação sobre a invasão russa, detalha também o comunicado. “Sugerimos aos nossos parceiros que desliguem todos os canais de notícias russos para que a declarada propaganda russa não vá além da própria Rússia. Em particular, pedimos que bloqueiem, desliguem a emissão destes canais nos satélites europeus.”

Também o YouTube é interpelado a bloquear os canais russos First Channel, Star, TNT, Russia Today e Ren TV, “todos ferramentas de propaganda russa”, lê-se num comunicado do ministério publicado na sua página verificada no Facebook. Os organizadores da Semana de Media de Kiev, um festival de cinema e televisão focado na Europa de Leste, enviaram por sua vez uma missiva aos media, citada pela revista norte-americana Variety, em que pedem também que a comunidade internacional “desligue a emissão de TV russa”.

"Muitos na Rússia estão com a Ucrânia"

Mesmo antes da invasão da Ucrânia pelas tropas do regime de Moscovo, os artistas russos já manifestavam a sua preocupação quanto a eventuais boicotes. “Queremos que a comunidade artística internacional saiba que muitos na Rússia estão com a Ucrânia”, dizia no início da semana passada o curador independente Alexander Burenkov, director artístico da Fundação AyarKut, citado pela publicação especializada Art Newspaper.

Os artistas ouvidos por este jornal chamavam a atenção para as dificuldades em manifestar esse apoio ou qualquer dissensão com o regime de Putin “devido ao rígido controlo da esfera pública”, como apontava Dmitry Vilensky, parte do colectivo Chto Delat. Vilensky sublinhava mesmo que a comunidade artística russa há muito se sente excluída do discurso cultural internacional. “Já há um boicote não oficial, mas não só dos artistas russos toda a Europa de Leste parece lamentavelmente sub-representada no palco internacional.”

A guerra entra este domingo no seu quarto dia e logo na sexta-feira o boicote cultural se fez sentir. A Royal Opera House de Londres decidiu cancelar toda a temporada de Verão que o Ballet Bolshoi ali faria de 26 de Julho a 14 de Agosto, devido “às actuais circunstâncias”. Também as interpretações de O Lago dos Cisnes pelo Royal Moscow Ballet no Helix de Dublin e no Wolverhampton Grand foram canceladas, bem como a actuação de sábado do Russian State Ballet of Siberia no Royal & Derngate de Northampton. Os bailarinos chegaram a subir ao palco na sexta-feira, tendo o diário britânico The Guardian falado com alguns espectadores que expressaram a sua solidariedade com os profissionais. “Não têm culpa de ter um líder déspota”, disse Selina Bidwell.

Também na sexta-feira, a Orquestra Filarmónica de Zagreb cancelou dois concertos de obras do compositor russo Piotr Illitch Tchaikovsky em solidariedade com a Ucrânia. “Somos artistas. Apenas podemos lutar com a música”, explicou então o maestro Mirko Boch.

Um maestro sob pressão

Um dos primeiros alvos deste movimento internacional foi outro maestro, o russo Valery Gergiev, apoiante de Putin, que já não dirigiu este fim-de-semana as actuações da Filarmónica de Viena no Carnegie Hall, em Nova Iorque, tendo sido substituído pelo canadiano Yannick Nézet-Séguin. Também o pianista russo e pró-Putin Denis Matsuev foi retirado do programa, tendo sido chamado para actuar em seu lugar o pianista sul-coreano Seong-Jin Cho.

Gergiev está a ser fortemente pressionado para condenar a invasão russa até segunda-feira, sob pena de ser afastado do seu cargo de maestro principal da Orquestra Filarmónica de Munique, que ocupa desde 2015 e cujo mandato só terminaria em Setembro deste ano. Nesse mesmo mês, deveria decorrer nos Países Baixos mais uma edição do festival com o nome deste músico de 68 anos, o Gergiev Festival, fundado em 1995, quando o russo se tornou maestro principal da Orquestra Filarmónica de Roterdão. Mas a formação também já ameaçou deixar cair o evento, bem como os outros concertos que deveria dirigir em Roterdão, caso Valery Gergiev continue a apoiar Putin. Igual ameaça veio do presidente da Câmara de Milão, em Itália, Beppe Sala, que manifestou a intenção de impedir que o maestro dirija as próximas récitas da ópera Dama de Espadas, de Tchaikovsky, em cena no Scala até 15 de Março, se não se demarcar da operação militar em curso. Mais duro, o festival Dvorak Praga, na República Checa, cancelou já liminarmente a presença do maestro, que ali iria dirigir a Orquestra Filarmónica de Munique a 9 de Setembro.

“Não podemos nem ignorar os acontecimentos actuais na Ucrânia nem deixar de mostrar a nossa solidariedade com as vítimas inocentes da guerra que agora começou. O nosso festival está a agir de forma clara ao cancelar a presença do maestro Valery Gergiev devido ao seu apoio historicamente documentado à política externa agressiva da Rússia e ao próprio Presidente Putin”, diz, em comunicado publicado no site do festival, o director da Academia de Música Clássica checa, Robert Kolář, que organiza o evento.

Ainda no campo da música, a medida de solidariedade com mais alcance popular até agora foi o cancelamento da participação russa na Eurovisão, anunciado na sexta-feira.

Entretanto, e enquanto a participação da Ucrânia na 59.ª Bienal de Veneza passou a estar em suspenso por falta de condições da equipa artística para continuar a trabalhar no projecto, a organização do evento permanece em silêncio sobre a presença da Rússia, que este ano teria como representantes os artistas Kirill Savchenkov e Alexandra Sukhareva, num projecto comissariado por Raimundas Malašauskas. “A Bienal de Veneza, um lugar onde todos os povos se encontram na arte e na cultura, está com todos os que estão a sofrer em resultado do ataque da Rússia à Ucrânia”, escreveu a organização em comunicado na sexta-feira.

Notícia corrigida para rectificar que Valery Gergiev é maestro principal da Orquestra Filarmónica de Munique desde 2015. Por lapso, o artigo referia que deveria ocupar o cargo apenas a partir de Setembro deste ano

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