“Como é que se explica às crianças que temos de fugir?” Ucranianos em êxodo para países vizinhos

Países que antes se opunham a receber refugiados como Polónia e Hungria abriram as portas aos vizinhos ucranianos. Há quem faça quilómetros a pé e peça a desconhecidos para levar os filhos. Nações Unidas estimam que mais de 100 mil pessoas saíram do país neste par de dias.

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Fronteira entre a Ucrãnia e Polónia com refugiados a atravessarem a pé Reuters/KACPER PEMPEL

Estava a tentar atravessar a fronteira da Ucrânia para a Hungria, mas não conseguiu por causa da proibição a todos os homens entre os 18 e os 60 anos de sair do país. Só que este pai de 38 anos levava na mão os seus dois filhos e era neles que pensava quando se preparava para os juntar à mãe, que vinha de Itália a caminho da Hungria.

Foi assim que, desesperado, pediu a uma desconhecida para pegar nos filhos, atravessar a fronteira e entregá-los à mãe do outro lado. Deu a Nataliya Ableyeva, 58 anos, o número de telemóvel da mulher, confiou-lhe os filhos e os passaportes deles. Foi em Beregsurany, na Hungria, perto de uma tenda feita para abrigar refugiados, que as crianças esperaram pela mãe.

A história contada pela agência Reuters não é única. Desde a agressão militar da Rússia que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) calcula em cerca de 120 mil o número de pessoas que passaram as fronteiras da Ucrânia em direcção aos países vizinhos. Segundo a agência de notícias húngara MTI pelo menos 400 a 500 pessoas tinham atravessado a fronteira a pé na quinta-feira.

A Ucrânia faz fronteira com quatro países da União Europeia - além da Polónia e Hungria, também com a Roménia e Eslováquia. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, disse que todos os países da UE tinham acordado em receber refugiados da Ucrânia. E de facto há quem agora demonstre abertura ao acolhimento de ucranianos quando no passado se opôs a receber refugiados.

À Polónia, onde vive a maior comunidade de ucranianos (mais de um milhão), na manhã de sábado tinham chegado cerca de nove mil pessoas, segundo a Reuters. Recentemente a Polónia gastou milhões de euros num projecto para construir um muro fronteiriço por causa dos refugiados do Médio Oriente que tentaram entrar no país; agora, o país está a mobilizar-se para acolher refugiados ucranianos, providenciando comida e assistência médica.

Só na quinta-feira a polícia de fronteira polaca tinha registado a chegada de 29 mil pessoas. A Polónia alterou, aliás, alguns procedimentos para facilitar a entrada de refugiados ucranianos, nomeadamente quanto aos documentos (admite-se entrada com passaporte interno ou com bilhete de identidade) e de menores (possível entrada de crianças sem documento de viagem, acompanhadas de certidão de nascimento), flexibilizando também as restrições por causa da pandemia.

Também a Hungria surpreendeu alguns: conhecido pelas suas posições anti-imigração, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán afirmou-se disponível para receber dezenas de milhares de refugiados ucranianos.​

Segundo a France 24 as filas gigantes de carros não param de crescer em direcção às fronteiras com a União Europeia. O que deverá ser apenas o princípio, segundo disse o ACNUR, que estimava em quatro milhões o número de pessoas que poderiam sair de suas casas no caso de a situação escalar. Só para a Polónia o director regional da UNICEF para a Europa e Ásia Central estimava que poderiam fugir entre um e três milhões e entre um e cinco milhões para os países vizinhos.

Fugida a pé

No terreno vários media têm dado conta do êxodo. ​Por causa da lei marcial têm sido sobretudo mulheres e crianças a abandonar o país.​ ​Para fugirem da guerra, nem todos conseguiram ir de carro. Sofia, uma mãe de Chortkiv, contava à France 24: “Saímos ontem à noite (sexta-feira) mas o autocarro não conseguia avançar. Andámos a pé 20 quilómetros”. O relato que fez foi de “pânico total” ao ver aviões e mísseis atingirem um depósito militar a 15 quilómetros de casa. “Como é que se explica às crianças que temos de fugir de casa urgentemente?”

Na Roménia, entraram cerca de dez mil pessoas nas últimas 24 horas, relata o Infomigrants, citando o Governo, que afirmou estar preparado para acolher 500 mil refugiados. A Eslováquia, que nas últimas 24 horas tinha recebido mais de 10.500 pessoas, também afirmou estar disponível para assistir ucranianos. E a Áustria mostrou-se igualmente disponível para acolher.

O New York Times titulava na manhã deste sábado: “Para os ucranianos a Europa abre as portas que estavam fechadas para outros”, numa alusão aos países europeus que se têm oposto a receber refugiados da Síria, Iraque ou Afeganistão. “Se pensarmos que uma das armas do Putin era tentar destabilizar o ocidente com uma crise de refugiados, então uma resposta calma, eficiente e ordenada é boa”, disse ao jornal Serena Parekh, professora na Universidade Northeastern em Boston que tem escrito sobre refugiados. “Por outro lado, é difícil não notar que os ucranianos são brancos, na maioria cristãos e europeus. Por isso de algum modo a xenofobia que cresceu nos últimos dez anos, sobretudo desde 2015, não está em jogo da mesma maneira que esteve para os refugiados vindos de África e do Médio Oriente”.

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