“Unidos contra um inimigo em comum”: na Rússia há quem se oponha à guerra (e a Putin)

Há vários anos que Natasha se junta a protestos na Rússia, mas o de quinta-feira passada foi diferente. Entoavam-se gritos de ordem: pedia-se a saída de Putin e o fim da guerra. Corriam o risco de ser detidos ou agredidos, mas nem isso demoveu os russos.

Foto
Manifestação em São Petersburgo, Rússia, contra a decisão de invadir a Ucrânia REUTERS/ANTON VAGANOV

Natasha Konstantinova atende a chamada e começa por pedir desculpa pelo aspecto físico. “Andámos durante muitas horas e estive muito tempo de pé. Isto tem sido muito cansativo física e emocionalmente”. A russa, de 33 anos, refere-se ao protesto no qual participou na passada quinta-feira (24) em São Petersburgo, na Rússia. A polícia e o Ministério Público russo emitiram alertas que deixavam claro que os protestos não estavam autorizados, mas isso não parou Natasha (nem as dezenas de pessoas que se juntaram a ela).

“Eu junto-me quase sempre a protestos aqui na Rússia, desde que apoie aquilo por que se está a protestar e partilhe do pensamento das pessoas que estão a organizar tudo. Não quer dizer que apoie todos os pontos de vista, mas estes protestos são a forma de mostrar que estamos a acompanhar e vigiar o que está a acontecer. E que não concordamos”, explicou ao PÚBLICO.

De acordo com a russa, que nasceu em Leningrad, ainda na URSS, o direito a protestar está expresso na constituição do seu país. No entanto, “o governo tenta suprimir esse direito”, afirma. “Dizem que podemos protestar, mas antes temos que pedir autorização às autoridades locais. Só que aqui, qualquer partido ou grupo de pessoas que faça este pedido é-lhes sempre negado. A menos que não seja contra o governo, porque aí já aceitam”.

Natasha tem apoiado Navalny e a oposição deste ao actual governo desde 2010, motivo pelo qual este não foi o primeiro protesto no qual participou. E também não será o último.

“Eu tenho uma filha pequena”, começa por contar. “Vejo claramente para onde o país caminha, a nível económico e não só. Estamos a tornar-nos um estado pária, com o qual ninguém quer lidar, como o Irão ou a Coreia do Norte. E olho para a minha filha e penso: quando ela crescer e vir isto e perguntar o que é que eu fiz para impedir o que está a acontecer, o que é que eu respondo?”. A resposta é simples, afirma: “vou dizer-lhe que fiz tudo o que podia. Que fui para a rua e apoiei as pessoas. E que, pelo menos, tentei. A minha consciência está limpa”.

Para a jovem, ver russos manifestar-se publicamente é sinal de coragem porque “vão para a rua sabendo que podem ser agredidos e até detidos”. Apesar do nervosismo motivado pela incerteza do que pode acontecer, os russos marcam presença. “Estamos ali representados e há pessoas de vários espectros políticos. E, apesar de termos alguns pontos de vista diferentes, estamos todos unidos contra um inimigo em comum”.

"Ponto de encontro: praça municipal da tua cidade"

Marina Litvinovich, jornalista e activista da oposição, apelou aos russos para que se manifestassem contra Putin e a decisão tomada. Mas, pouco tempo depois, acabou por ser detida. Face a um Navalny fora de cena e à detenção de Litvinovich, “quem decidiu fazer alguma coisa foi uma organização de jovens”, a Vesna. Na publicação da organização podia ler-se “A Rússia é contra a guerra. 19h. Na praça municipal da tua cidade”.

Pouco tempo depois, em poucas horas, São Petersburgo encheu-se, maioritariamente, de jovens. Mas não só, recorda Natasha ao PÚBLICO: “havia muitos jovens, mas havia pessoas mais idosas também! Havia uma senhora, uma avó, a quem eu perguntei se estava contra a guerra. Ela disse-me logo que não entendia o que se passava e contou-me que a sua irmã está na Ucrânia. Ela perguntava-me constantemente ‘porque é que estão a matar pessoas? O que é que se passa?’. As pessoas não entendem”.

Para Natasha, no protesto que viveu, “a oposição [a Putin e ao governo] fez-se presente”, mas foi também um momento “traumático”. “A polícia estava a bater nas pessoas à minha frente com imensa força. E eu estava ali a tentar gravar tudo com isto a acontecer ao pé de mim. Estava a tremer imenso, mas queria mostrar o que se passava”, conta. De acordo com a russa, os protestos no país não são “como acontecem em França”. “Nós não vamos lá para lutar. São sempre protestos pacíficos. Ninguém começa lutas, ninguém bate em ninguém ou queima carros. Aqui é muito diferente, muito normal; natural”. Nas ruas entoavam-se gritos de ordem: pedia-se a saída de Putin e o fim da guerra.

Mas, independentemente das tentativas de levar a cabo um protesto pacífico, mais de 1000 pessoas, a nível nacional, acabaram detidas pela polícia russa.

"Neste país há sempre um risco, mesmo que não faças nada"

Natasha tem partilhado o dia-a-dia no seu país natal desde 2018. Isto porque, depois de alguns anos passados no estrangeiro, apercebeu-se que “ninguém conhece a Rússia” e que a noção mais frequente é a de que “apenas existem ursos e gente má” no país.

Actualmente, a jovem tem mais de 30 mil seguidores no Instagram e uma grande exposição nas redes sociais. Mas isso não a assusta. “Há sempre um risco. Mas neste país há sempre um risco, mesmo que não faças nada. Se alguém decidir tornar-te um alvo, serás sempre um alvo, seja quando for”, afirma com confiança.

Segundo a influencer russa, a sua geração “cresceu quando a Rússia ainda era um país livre”. “Na época tínhamos televisão livre! Podíamos ser diferentes, podíamos criticar abertamente o Putin. E agora já não há isso. Estas novas gerações não sabem o que é viver sem o Putin. E isto já nem é só sobre a guerra, é sobre o futuro também”, defende.

Natasha tem amigos próximos e família na Ucrânia, em Kiev e Adessa. Inclusivamente vai várias vezes a Lugansk. “Quando soube o que estava a acontecer mandei logo imensas mensagens a perguntar o que se passava. Eu estava em choque. O que é que ele está a fazer? A Ucrânia não é nossa inimiga, nós não queremos esta guerra! Os meus vizinhos são ucranianos, nós vivemos todos juntos”.

Os pais da jovem nunca concordaram com a sua participação nos protestos. Mas, neste último, a primeira pergunta do seu pai – que não está na Rússia – foi porque é que a polícia batia e prendia os protestantes. “Ele perguntou-me porque é que não podíamos protestar. Eu disse-lhe logo: ‘Porque é que achas que estamos a protestar há tanto tempo?’. Agora apoia-me”.

Sugerir correcção
Comentar