Bielorrússia, o país que a Rússia já absorveu

Para ficar no poder, Lukashenko deu a Putin tudo o que ele quis. No domingo, os bielorrussos votam num referendo para formalizar o domínio russo e legalizar a presença de armas nucleares no seu país.

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Lukashenko e Putin num dos seus recorrentes encontros SERGEY GUNEEV/EPA

Um dia, provavelmente não muito em breve, a oposição e a sociedade civil bielorrussas vão prevalecer – é inevitável, os últimos anos mostraram a sua força e coragem. Por agora, a maioria dos analistas descreve a Bielorrússia como um país ocupado pela Rússia de Vladimir Putin, com um líder que trocou a soberania nacional pela sua sobrevivência. Este domingo, Alexander Lukashenko vai chamar os bielorrussos a votar num referendo que visa dar um embrulho de legitimidade a essa ocupação, legalizando a presença do Exército russo e, a prazo, a presença de armas nucleares russas no país.

“A invasão silenciosa e a ocupação de facto pela Rússia pode ser o maior triunfo de Putin na actual crise. Dá aos militares russos a muito desejada profundidade estratégica”, afirmava há dias Jans Claas Behrends, historiador no Centro Leibniz de História Contemporânea, em Potsdam, ouvido pelo think tank Carnegie Europe. “A Rússia salvou um autocrata. A Bielorrússia deixou de ser um Estado-tampão. Está firmemente ancorado no domínio imperial de Moscovo, e Lukashenko, em tempos um jogador, está reduzido a um peão no jogo geopolítico”, descrevia Behrends, antes do início da intervenção militar russa na Ucrânia.

Durante muito tempo, Lukashenko oscilou oportunisticamente entre Moscovo e Bruxelas, aproximando-se a um lado ou a outro, segundo as circunstâncias. Com as eleições que tanto a União Europeia como uma boa parte da população bielorrussa consideraram fraudulentas, e que oficialmente reelegeram Lukashenko com 80% dos votos, em Agosto de 2020, tudo mudou.

A violenta repressão aos protestos, o desvio de um avião comercial europeu para prender um dissidente e a promoção das viagens de requerentes de asilo usados pela Bielorrússia para pressionar as fronteiras da União Europeia fizeram o resto – Bruxelas viu este último passo como mais uma fase da “guerra híbrida” lançada pelo Kremlin contra a Europa e centrada em ciberataques e campanhas de desinformação.

Moscovo passou a ser o único caminho de Lukashenko, desta vez sem retorno. Neste contexto, a Bielorrússia servir de plataforma para a ofensiva russa de quinta-feira – lançada através do Donbass, a Leste, pelo Sul, a partir da Crimeia, e pelo Norte, por via do território bielorrusso – acontece tão naturalmente como as novas sanções anunciadas por Washington e por Bruxelas contra Minsk.

O Tratado sobre a Criação de um Estado da União da Rússia e da Bielorrússia foi assinado em Dezembro de 1999, na sequência de experiências dos anos anteriores, estipulando uma colaboração alargada entre dois Estados soberanos. Na altura, era Lukashenko que acreditava poder dominar Boris Ieltsin. Mas a integração, principalmente militar, acelerou muito nos últimos dois anos, com exercícios que aprofundaram a parceria e a criação de três centros de treino de combate conjuntos, o ano passado.

Em Novembro, Lukashenko e Putin assinaram um decreto de integração económica e militar (incluindo 28 programas de cooperação que vão do sector fiscal às questões alfandegárias, passando pela ciência) justificado com o contexto de “pressão externa sem precedentes”. “Para a Bielorrússia, o Estado da União é a prioridade das prioridades”, afirmou Lukashenko.

No domingo, dia 20, soube-se que as 30 mil forças enviadas para os mais recentes exercícios iam permanecer indefinidamente na Bielorrússia. “Podemos considerar 20 de Fevereiro como a data da ocupação factual da Bielorrússia”, diz Linas Linkevicius, antigo ministro da Defesa e dos Negócios Estrangeiros da Lituânia, em declarações recolhidas pelo Carnegie Europe. “Já não é possível distinguir entre as forças russas e bielorrussas”, disse ao jornal The New York Times o tenente-general Valderamas Rupsys, chefe das Forças Armadas lituanas, a propósito dos últimos exercícios ordenados por Putin e Lukashenko.

“Antes, só a força aérea e os sistemas de vigilância aéreos estavam integrados, agora assistimos a uma integração e subordinação sistemáticas das forças da Bielorrússia às da Rússia”, descreveu ainda Rupsys, desvalorizando até a permanência das forças russas depois do fim dos exercícios. Afinal, diz, “as forças armadas bielorrussas estão já directamente subordinadas ao comando supremo militar russo”.

"Sem disparar um tiro"

Lukashenko precisa de Putin para sobreviver económica e politicamente. Putin, dependendo das opiniões, pode querer o controlo absoluto do país vizinho ou a sua absorção completa, é uma questão formal. “No espaço de um mês, Putin conseguiu, na prática, transformar um ex-Estado soviético numa extensão do território russo, à vista dos Estados Unidos e da Europa, sem disparar um único tiro”, escreveu no início da semana Yasmeen Serhan, na revista The Atlantic.

O passo seguinte é a votação marcada para domingo, um referendo constitucional para preservar as funções e a autoridade do chefe de Estado, acabando, ao mesmo tempo, com os artigos que até agora garantiam a neutralidade da Bielorrússia e a sua obrigação de permanecer livre de armas nucleares.

Do ponto de vista político, de acordo com a análise do jornalista bielorrusso Igor Ilyash no site openDemocracy, as alterações são uma forma de Lukashenko assegurar “um poderoso mecanismo para uma transição autoritária de poder”. Apesar de esta não ser uma das suas preocupações imediatas, “parece que Lukashenko começou a pensar há algum tempo sobre o futuro da sua família e dos seus apoiantes mais próximos, assim como no seu legado político”.

Assim, a nova Assembleia do Povo de Toda a Bielorrússia, “um fórum que reúne os seus apoiantes”, passará a ter poderes de emergência para garantir “uma rede de segurança”, caso “as pessoas erradas cheguem ao poder”, podendo até, segundo Ilyash, “remover o Presidente num cenário de violação sistemática da Constituição ou de traição, assim como considerar se umas eleições são legítimas”. Aos 67 anos, Lukashenko, que já alterara a Constituição para se prolongar no poder, passa a poder governar até 2035, dois mandatos de cinco anos a partir do fim do seu actual, em 2025, passando de futuro a ser esse o máximo permitido por lei.

Políticas “mais previsíveis"

Ilyash, e não é o único, sustenta que estas reformas constitucionais foram uma das exigências do Kremlin em troca do apoio a Lukashenko nos protestos de 2020, os maiores que já enfrentara. Preocupados com a “crescente rejeição popular” do Presidente entre os bielorrussos, os russos terão decidido forçar Minsk a expandir os poderes no novo Parlamento, dando a “elementos pró-russos a maior influência possível” e tornando assim “mais previsíveis a política doméstica e externa do país”.

Em termos práticos e imediatos, o que os membros da NATO temem é mesmo a possibilidade de ver forças nucleares estacionadas na Bielorrússia – Lukashenko já disse várias vezes que o país estaria pronto a acolher “armas super-nucleares” caso se sentisse ameaçado pelos “ocidentais”.

Como os últimos acontecimentos demonstram, não seria preciso mudar a Constituição para nada disso. Um autocrata não cumpre as leis. Mas sabendo que o voto só pode ter um resultado, Lukashenko escolheu “fazer uma vaga tentativa de alinhar os parâmetros constitucionais com as suas necessidades pessoais”, até porque assim “se torna mais fácil ao Presidente russo legitimar uma maior integração”, sustenta Gwendolyn Sasse, directora do Centro para os Estudos Internacionais e da Europa de Leste de Berlim.

A nova Constituição, nota Sasse, “vai explicitar o que já se tornou realidade: Lukashenko depende inteiramente dos seus laços com Vladimir Putin”. Paradoxalmente, antecipa a investigadora, a mesma Constituição que agora facilita a vida dos dois líderes acabará por “servir de referência ao descontentamento, quando este voltar a poder ser expresso – possivelmente nas próximas eleições presidenciais, se não antes”.

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