Sem mais rotinas para além de fugir

Ela a sentir-se um caos, embora saiba bem que não o seja, que é só mais um final de dia, levemente indigesta quando pensa na vida perfeita dos outros porque a nossa nunca é como se deseja.

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Um pai despede-se da sua filha, durante a evacuação da cidade de Donetsk, na Ucrânia ALEXANDER ERMOCHENKO/Reuters

E lá vai ela lançada ainda nas rotinas, cansada ao final de um dia inteiro de trabalho, a ruminar sobre coisas de nada e a escorrer tarefas com vontade de parar, desfeita e dorida pelo excesso de rotinas e pelas tais coisas de nada, acredita, com pressa no regresso a casa, esvaída de fome, mas lanchou há poucas horas, morta pelo cheiro dos filhos nos seus braços, por muito que reclame por isto e por aquilo, eles sabem de cor que a mãe os ama demais (mas o amor nunca é demais) e estão ali tão vivos com ela agora, e que descanso é sempre para o coração de mãe vê-los sorrir, confortavelmente, por muito cansada que esteja.

E ela a sentir-se um caos, embora saiba bem que não o seja, que é só mais um final de dia, levemente indigesta quando pensa na vida perfeita dos outros porque a nossa nunca é como se deseja... A cidade vai dormir, e ela a desfiar sem querer as coisas por fazer antes de adormecer aconchegadamente, como sempre.

Afortunadamente.

E amanhã ou depois o parque vai estar ainda à sua espera, sem surpresa, sempre no mesmo sítio, (e onde mais estaria), e os seus filhos contentes vão correr, conversar e gargalhar com ela, que lhes vai soletrando o ABC da vida o melhor que pode, dessa vida que passa rapidamente, e vai saboreando mentalmente embora com nostalgia a palavra “crescer” que todos têm escrita na testa, que vida dura esta, acha, mas os corpos estão quentes e a transbordar de vida, esperança e alegria.

E lá vai ela sem mais rotinas para além de fugir, sabe lá que dia é aquele, a ruminar o medo, e o que são coisas de nada, exausta de tanto chorar, a vida virada do avesso escorrida de cansaços, perdida no desencanto, desfeita e dorida pela maldita guerra que nunca mais vai terminar, já não sabe o que é ter fome, já não sabe o que é comer, já nem sabe o que é sentir, esvaída de tristeza, na incerteza de voltar a ver os seus filhos, escondidos numa cave de um prédio em escombros, um prédio qualquer, entre a poeira.

E os seus filhos encontrados mortos, frios, arroxeados, amparados pelos seus braços, mas já não sabem dar abraços, quem lhe dera que reclamassem por isto e por aquilo, eles sabiam de cor como os amava demais (queria tê-los amado muito mais, ficou a sobrar tanto amor), os seus filhos já não estão vivos, ali com ela, nunca mais.

Ela, um caos, e já nem quer saber, demasiado indigesta quando pensa na vida normal e na rotina certa dos filhos dos outros, numa outra cidade do outro lado do planeta, que ainda é cidade e vai dormir. A dela já não dorme há muito tempo e já não é sequer cidade. O terror no pensamento não deixa ninguém dormir em nenhum momento, e os filhos dos amigos também sem vida ou feridos, os gemidos em coro ecoam sofridos no parque onde dantes corriam e eram crianças na brincadeira. E o amanhã é nas horas seguintes, a escuridão a única fronteira entre a noite e o dia, e o parque já não vai estar à espera, sem surpresa, sempre no mesmo sítio, porque deixou de existir, o parque é agora uma cratera funda, ferida aberta profunda na sua terra esventrada por uma guerra sem sentido, inventada pelos que se julgam senhores do mundo.

E as feridas dela não param de sangrar, os corpos frios dos filhos nos seus braços enquanto o seu coração, quase sem bater mas ainda a latejar, lhes vai soletrando rapidamente o ABC da vida que já não poderão viver, saboreando mentalmente a palavra “crescer” que todos traziam escrita na testa, quando transbordavam vida, esperança e alegria.

E a morte a chegar finalmente para ela. Cai inanimada na cratera, morta mas abraçada aos filhos num aperto enovelado que ninguém mais vai separar. O dia amanhece nublado, o chão do parque deserto orvalhado pelas últimas lágrimas da tristeza dela, ninguém mais ali à espera, talvez estejam todos juntos felizes num outro sítio qualquer a correr pelo parque, se Deus quiser.

Noite de pesadelos, e que bom acordar, e que bom ser outro dia mesmo não sendo dia de parque, o parque à espera no mesmo sítio, e que surpresa boa, os abraços dos filhos também, e que surpresa boa, por muito que reclame disto e daquilo vai amá-los hoje ainda, e enquanto puder, cada vez mais. Vivos, a transbordar de vida, esperança, e alegria. Que sorte a dela afinal.

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