História e cidadania

Qual a relação entre o estudo do passado, o presente e o futuro?

Fazer história, para quê? Qual a relação entre o estudo do passado, o presente e o futuro? Que interseções ocorrem entre história e memória coletiva? Estas são as perguntas que norteiam, geralmente, os historiadores interessados numa reflexão sobre os fundamentos da sua profissão. Sempre existiu algum sentido crítico entre os cronistas do passado, definido pelas escolhas das narrativas que construíam, embora na maioria dos casos se empenhassem na promoção dos interesses políticos dos poderes estabelecidos de quem dependiam. Esse sentido crítico tornou-se mais apurado com convulsões políticas e sociais, que expuseram o conflito de visões e de interesses que perpassa qualquer sociedade.

A doação de Constantino, que legitimava a pretensão de domínio senhorial da Igreja romana sobre Itália, foi exposta como uma falsificação grosseira com sólidos argumentos filológicos por Lorenzo Valla em 1439-1440, mas já antes Dante tinha levantado dúvidas sobre a sua autenticidade. A luta entre os interesses do papado e do Sacro Império funcionava como pano de fundo. Os fundamentos da religião e da sociedade foram postos em causa por movimentos radicais na Idade Média, tanto contra os nobres, contestando “tradições” recentes de acumulação de obrigações, como contra a própria Igreja romana, tendo sido contestados boa parte dos sacramentos, a liturgia da Igreja ou o celibato dos padres com base nas práticas da igreja primitiva. A leitura direta das Escrituras e dos Padres da Igreja, bem como o ambiente de contestação das autoridades mediadoras, permitiu novas interpretações.

A descoberta de registos da Inquisição medieval no Languedoc, transmitida por John Locke a Philipp van Limborch, teólogo Arminiano divergente da maioria Calvinista nos Países Baixos, serviu para uma primeira leitura crítica dos processos. O propósito era apontar a Inquisição como um contraexemplo de intolerância religiosa que não seria admissível entre Protestantes. Esta dinâmica de conflito do final do século XVII acabou por influenciar, a longo prazo, a mudança do sistema de valores na Europa, onde a tolerância religiosa assumiu uma posição central.

Juan Antonio Llorente, liberal que fora secretário da Inquisição em Madrid, publicou em 1817 no seu exílio em França a primeira história do tribunal da fé baseada na análise sistemática de milhares de processos e documentos internos. Ele fez mais, publicou uma história da opinião pública contrária à Inquisição. Este livro, menos conhecido, é da maior importância, pois serviu para contestar a ideia da Inquisição como expressão uniforme do espírito do tempo, uma ideia essencializada da instituição reciclada pela historiografia funcionalista moderna, que vê na Inquisição um reflexo da sociedade, quando foi o resultado de lutas internas da Igreja Católica, instrumentalizadas pelo poder politico.

Alexandre Herculano mostrou como o milagre de Ourique (Cristo teria aparecido a D. Afonso Henriques na véspera da batalha de Ourique) resultara de uma falsificação três séculos mais tarde, não havendo qualquer referência nos documentos anteriores. Trata-se de um mito de fundação tardio. A campanha de difamação que sofreu por parte do clero teve boas consequências: como retribuição escreveu a história do estabelecimento da Inquisição em Portugal, uma obra-prima de pesquisa que mostrou a corrupção prevalente em Roma e a baixeza dos interesses locais contra judeus forçados à conversão e em seguida discriminados. Há milhões de outros exemplos de impacto público da pesquisa histórica em todo o mundo, que se pretende crítica, destinada a desmontar mitos e efabulações, escrutinando retóricas políticas e analisando os interesses envolvidos sob capa de opinião pública.

A história crítica faz perguntas ao passado que refletem as preocupações do presente. Desde os anos de 1960 que se acumulam boas histórias do clima e do meio ambiente, a perseguição religiosa e política de populações em diversas partes do mundo, os genocídios na Namíbia, no Império Otomano, na Alemanha nazi ou no Ruanda, os campos de concentração na União Soviética, os movimentos forçados de migração, o tráfico de escravos, as diversas dimensões do pensamento politico e económico, as teorias das raças e o racismo que cimentaram sociedades coloniais e justificam divisões internacionais do trabalho. A história tornou-se cada vez mais comparativa e interessada em movimentos globais que não são só de hoje.

O impacto público da história começou igualmente a ser medido pelas universidades de diversas partes do mundo. A noção de cidadania, ou seja, de contribuição do conhecimento histórico para o bem comum, que era exercida de forma individual, é agora vista como um dever coletivo. A norma é colocar ao serviço da comunidade o conhecimento adquirido. A luta contra o racismo ou a integração de minorias, por exemplo, está no programa educativo de vários países europeus e consta das convenções da União Europeia. Nesses países existe uma relação próxima de trabalho de escolas e museus com cientistas políticos, sociólogos e historiadores. Mas há outros campos fundamentais de intervenção.

Hannah Landecker, cientista e socióloga da UCLA, apresentou os resultados da sua investigação sobre a industrialização do metabolismo no Wissenschaftskolleg de Berlim. Ela estuda o alimento do alimento, ou seja, as substancias que entram na cadeia alimentar dos animais e em seguida dos humanos, sendo o desperdício dos animais usado para a fertilização dos campos, contaminando a água. Landecker mostra a transformação radical que sofreu a indústria, sobretudo a partir dos anos de 1920, com o desenvolvimento da química. O princípio de isolamento de componentes químicos e processos de sintetização passaram a fazer parte corrente da alimentação animal, mudando o seu metabolismo. O arsénico, a metionina e os antibióticos são usados de forma massiva nessa alimentação; o arsénico só foi proibido nos Estados Unidos em 2015. A transformação de desperdício em proteína é outras das obsessões atuais para fazer músculo. A Antropocena, ou seja, o mundo modelado pela intervenção do homem, não tem retorno, mas talvez este estudo possa informar políticas de regulamentação do alimento de animais.

Um outro exemplo é o do Archiv der Flucht, ou Arquivo do Refúgio, organizado pela Carolin Emcke (jornalista premiada que trabalhou em áreas de conflito para o Der Spiegel e o Die Zeit) e Manuela Bojadžijev (Professora especializada em racismo e migrações na Universidade de Humboldt). Organizaram dezenas de longas entrevistas a refugiados de 27 países diferentes que vieram para a Alemanha desde 1945 aos nossos dias. Este projecto de história oral revela a humanidade comovente destes protagonistas. É importante para quebrar os preconceitos e o ódio que existe em certos meios que manipulam medo e ignorância. As entrevistas, várias na língua original, têm tradução em inglês. Aqui fica o website: https://archivderflucht.hkw.de/en/.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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