Carta Aberta a um ministro da Cultura (ainda) por anunciar

Alterar o estado de coisas no sector cultural e nas indústrias criativas não é tarefa de um ministro só. Tem de ser um desígnio de todo o Governo e do país.

No momento em que escrevo estas linhas não sei quem será o seu destinatário. Claro que os protagonistas contam, mas não é deles que agora trato.

O que sei é que terá pela frente um enorme desafio: reerguer um sector que – como o próprio secretário-geral do PS assumiu durante a campanha eleitoral – foi o mais afetado pela crise pandémica.

Mas, se a crise pôs a nu as debilidades do sector cultural e das indústrias criativas, os problemas estruturais já existiam antes e, infelizmente, perduram. A falta de investimento público; a descapitalização dos empresários; a falta de “escala”, que aumenta o risco e desincentiva o investimento; a precariedade; a incerteza da continuação da atividade, muitas vezes motivada pela dependência de subvenções públicas. Tudo isto existia antes da pandemia, e por cá ficará, se o paradigma não for alterado.

Alterar este estado de coisas não é tarefa de um ministro só. Tem de ser um desígnio de todo o Governo e do país. De pouco servem apoios à produção (que muitas vezes são apoios à subsistência), se estes não casarem com a política de criação de públicos. O aumento do investimento público na cultura é essencial, mas, se não houver uma visão transversal que o conjugue com a educação, economia e até com a diplomacia e a fiscalidade, o esforço dos contribuintes cairá sobre os agentes culturais como chuva no deserto.

A Cultura não é – não pode ser – um acessório. Um anel (para mais de bijuteria) na mão de um Governo que o exibe como um sinal exterior de “intelectualidade”.

Falta uma estratégia de promoção e fruição cultural que assuma que cultura é também educação, cidadania, democracia, soberania, economia, exportação, valor acrescentado e crescimento.

Quem assumir o encargo de gerir a política cultural do país terá que se assumir como ministro das indústrias culturais e criativas e, também, de perceber que há agentes económicos que correm riscos ao investir neste sector num país com a dimensão de Portugal.

É preciso criar as condições de mercado no plano digital, a começar por recuperar o atraso na transposição da Diretiva do Direito de Autor no Mercado Único Digital. Neste contexto, há que compreender que o combate à usurpação só é viável se a Inspeção Geral das Atividades Culturais for dotada dos meios necessários para fazer face às suas crescentes competências.

Há incompreensíveis assimetrias fiscais a corrigir, que privilegiam os fundos de investimento e o mercado imobiliário versus o investimento cultural e a gestão corrente dos direitos dos criadores.

A par com um conjunto de atividades culturais que carecem de subvenções públicas para a sua subsistência, há, também, um sector “empresarial” da cultura que tem sido esquecido e arredado das políticas públicas. É necessário ouvi-lo para conhecer as suas insuficiências e ambições.

A Cultura, entendida sem preconceitos estéticos ou elitismos pseudointelectuais, pode ser um fator de crescimento, contribuir para a balança de exportações e para a afirmação de Portugal, desde logo no espaço europeu e na lusofonia. A música nacional – desde sempre arredada de qualquer apoio consistente à edição - é bem o exemplo de como uma política estruturada e horizontal de alargamento do mercado pode contribuir, por si só, para alavancar o investimento de todos aqueles que, por paixão ou vocação, continuam a investir o seu tempo, talento e recursos financeiros na criação, produção e edição musical.

Outros Estados, também eles periféricos, começaram há muito a trilhar este caminho e colhem hoje os frutos desse investimento, mesmo sem terem a enorme vantagem que é o património transcontinental da Língua Portuguesa.

Estes são desafios que o ministro da Cultura tem pela frente. Aqui lhe deixo sinceros votos de sucesso, o qual contribuirá decisivamente para o sucesso de Portugal.

Desejo, por fim, que a ausência de discussão dos temas da Cultura durante a campanha eleitoral seja diretamente proporcional à centralidade que ela assumirá no seu Governo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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