O milagre da multiplicação dos patos

Promessas não faltam. Da criação de uma pensão mínima garantida igual ao salário mínimo a um subsídio de risco para os agentes de segurança.

Tudo indica que a composição do Parlamento mude de forma singular no próximo domingo. As últimas semanas deixam-nos antever o triste espectáculo que subjaz a essa transformação. Podemos contar com isso como resultado do crescimento do Chega. Outros contarão com o “fim do sistema” ou a moralização da política.

Podemos legitimamente discutir essas opções. Mas talvez importe, antes, indo directamente ao osso, perguntar: acreditará alguém, genuinamente, que André Ventura fará “tremer” o sistema, por força das suas convicções? Todos o conhecemos dos debates de bola. A indignação com que defende que a falta foi dentro da área é a mesma que ensaia quando discute a prisão perpétua. Seria a mesma se tivesse de vender um aspirador sueco. Ou um programa eleitoral.

Senão, vejamos, o programa do Chega, apresentado em 2019, defendia que as “funções sociais devem tender para um estatuto de mera residualidade”. No programa aprovado em Congresso, em 2021, depois de várias críticas e com uma pandemia pelo meio, o conteúdo mudou: “Funções sociais: assumem particular relevo nos sectores do Ensino, Saúde e Segurança Social”. Um programa eleitoral foi apresentado mais recentemente, já em Dezembro. Três semanas depois, foram apresentadas “As 100 medidas do governo Chega”. Com três documentos, contudo, não é possível saber o que o Chega defende para a TAP ou em relação ao salário mínimo nacional. Nos debates televisivos, à terça, Ventura manifestava-se contra as privatizações. À quinta, contra o despesismo do Estado. Não é exemplo único de oscilação: se nas “100 medidas” se defendia a abolição das portagens “em vários pontos do país”, nove dias depois propunha-se o “fim das portagens em todo o país”.

Promessas não faltam. Da criação de uma pensão mínima garantida igual ao salário mínimo, uma despesa de milhares de milhões de euros que ninguém sabe como vai ser financiada (como o PÚBLICO noticiou, confrontado com esta proposta em debate, André Ventura referiu que o que se gasta no RSI é mais de um terço dos gastos em salários na administração pública: não é, é exactamente 1,5%), a um subsídio de risco para os agentes de segurança. Quem paga o baile? Provavelmente o pobre azarado que ficou sem emprego, apesar de ter descontado do seu bolso ao longos dos anos, visto que será “instituído serviço comunitário obrigatório durante a concessão de subsídio de desemprego”. Mais uma vez, questionado sobre o tema, Ventura disse que não defendia isso. Mas defende. E está escrito.

É tudo isto uma questão de essência do partido? Talvez. Mas há certamente uma inspiração, pouco divina, do líder. Nos debates, Ventura lamentava que o “insultassem”, dizendo que era de extrema-direita. Mas o que escrevia há não muitos anos? O seguinte: “A candidata da extrema-direita francesa lançou oficialmente a campanha presidencial, afirmando-se a voz do povo (...) Propostas como a saída do Euro e da UE (...) estão na carta eleitoral da Frente Nacional, ameaçando o futuro da Europa”. Ou que, “tal como o comissário europeu já disse, a eventual chegada de Le Pen ao Eliseu suporia o fim do projecto da UE e um futuro de extraordinária incerteza.” Será que Ventura transmitiu estas inquietações a Marine Le Pen quando a recebeu, em Portugal, em 2021, com toda a fanfarra?

Sobre os refugiados? “Continua o inferno dos refugiados sobre o mar Mediterrâneo. Mais 40 imigrantes encontrados mortos num barco resgatado pela marinha italiana num drama que não parece ter fim”. Então, a discriminação era um problema, pelos vistos: “Com a chegada de milhares de refugiados, alguns países europeus têm enfrentado lamentáveis manifestações de xenofobia que têm, em alguns casos, resultado em violentos confrontos.” Quão longe estamos das diatribes sobre Iphones e estrangeiros que vêm esmifrar os portugueses?

Há inúmeros exemplos desta natureza. Ao Observador, Ventura disse que a justiça tem sido “extremamente benevolente” em termos de “medidas de coacção”. Nos debates, a este propósito, citou todos os nomes da praxe: João Rendeiro, Ricardo Salgado, José Sócrates. Faltou referir o nome de Luís Filipe Vieira, talvez por aquele dispositivo mental através do qual todos tendemos a matar o pai, talvez um fenómeno a que a juventude hoje chama ghosting. Voltando à vaca fria, o que escrevia Ventura em A Nova Justiça Internacional, há meia dúzia de anos, sobre as medidas de coacção? Que havia uma “tendência para uma aplicação excessiva de prisão preventiva” e que “o sistema jurídico português permite a aplicação de prisão preventiva do suspeito numa grande variedade de casos”. Para que não restem dúvidas: “Esta disposição [relativa à prisão preventiva] normativa permite, evidentemente, uma aplicação muito mais ampla da medida, nomeadamente a situações em que, em princípio, a gravidade da mesma ou a perigosidade do suspeito não exigira impor-se qualquer restrição à sua liberdade.”

Ventura argumentará que isto é o académico Ventura e não o político Ventura. Cada um fará o seu juízo, mas restarão poucas as dúvidas de que sempre soube retirar o melhor da sua “polivalência”. Além da análise crítica do sistema de justiça (que, por vezes, é mesmo do que se trata), podemos ver no citado livro um guia de instruções para o sucesso de um deputado de fancaria. Tente-se encontrar as semelhanças de método e estratégia: “Quando a narrativa institucional se molda nos termos acima referidos, facilmente começa a construir-se a percepção social de que a segurança e liberdades fundamentais não se integram numa interrelação construtiva (como preconiza o modelo liberal de democracia) mas antes como valores opostos em que a garantia de um implica significativos sacrifícios sobre o outro”.

Como rematava, “este discurso institucional resulta inevitavelmente na criação de um “estado emotivo” e de um “contexto psico-social” que, por sua vez, se traduzirão numa forte pressão no sentido de alterações legislativas que vão de [sic] encontro às novas “preocupações”, “necessidades” e “aspirações” da sociedade” (aspas de Ventura). Está aqui a medida exacta do sucesso: “Um discurso político (quer ao nível governamental, quer parlamentar, quer regional) composto por uma carga ideológica altamente centralista, repressiva e autocrática acabará por repercutir-se, directa e indirectamente, no funcionamento do processo penal”. Porque “este tipo de discurso e de contexto acaba por provocar nas populações uma espécie de “estado emotivo” muito peculiar, diminuindo a sua capacidade de reivindicação e contestação”. Lapidar.

Este último trecho é provavelmente a única coisa em que Ventura acredita piamente. Desta breve incursão, que poderia ser alargada, percebe-se que as suas convicções são mais voláteis do que o universo de militantes do Chega (ao dia de hoje, das cercas de duas centenas e meia de notícias que constam do site do partido, à volta de 80 são sobre suspensões ou expulsões de militantes). Tudo se baseia em acicatar “estados emotivos”, o que o deputado faz com denodo. Mas será este o candidato que fará “tremer” o sistema? O que defenderá amanhã Ventura? Não sabemos. Também não sabemos se o sistema vai tremer, mas podemos estar seguros de que as propostas e ideias de Ventura vão bambolear. É essa a única garantia que ele pode dar aos seus eleitores. Eleitores, esses, que não devem ser confundidos com ignorantes ou brutos. Mas que, independentemente das suas convicções, deviam perguntar-se se esta figura estará em condições de lhes transmitir alguma confiança. Porque, se a pergunta não for feita, arriscamo-nos a ter um milagre da multiplicação dos patos.

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